LITERATURA DE CORDEL: UMA EXPERIÊNCIA (PARTE 1)
Eis um texto em que tudo o que eu disser eu sei que não dará conta de expressar o que vivi. Mas, então, por que escrevê-lo? Porque, apesar de tudo, é melhor o pouco do que o nada, e o pouco, sob o som do cordel, é muito.
Em janeiro de 2023 tive a oportunidade de conhecer a Casa do Cordel, localizada em Natal, Rio Grande do Norte, e lá conheci dois cordelistas, Abaeté do Cordel e Chico do Iaiá. Mais ansioso do que conhecer as praias de Pipa, Genipabu ou qualquer outra, eu queria conhecer aquele lugar, no centro da capital potiguar, repleta de livros de cordel.
A experiência não poderia ter sido melhor. Em uma mesa, conversando, estavam Abaeté e Chico, e outros dois senhores que só falavam de cultura e de poesia. Maravilhado, eu andava pela Casa feito uma criança. Ainda bem que a minha esposa não me regula a comprar livros, pois não fiquei com vontade de nada: comprei 44. Mas, que ninguém se assuste, ou que não se assuste muito, pois livros de cordel têm um preço mais simbólico: paguei R$ 2,50 por cada.
Que poder tem a cultura, e como que ela me domina. Fui iniciado nesse universo pela minha mãe e pelo professor Sebastião Soares de Castro, sendo que este, no tempo de ensino médio, me apresentou à literatura de cordel. Eu gostei tanto que, após ele me levar um para apreciar, eu pedi mais e mais, até que o mestre não tinha mais nenhum inédito para eu ler. Minha mãe, por sua vez, quando viajou para o nordeste, Piauí, para visitar a sua irmã, me trouxe vários cordéis, e eu próprio, em minha primeira viagem ao nordeste, me presenteei com essa literatura.
E por que eu gosto tanto de cordel? Eis uma pergunta que, se eu investigar a fundo, não encontrarei uma resposta exata, objetiva, afinal, a vida vai além das palavras, como eu disse no início desse texto. Mas, talvez eu possa dizer que tenho esse gosto porque cordel é sinônimo de música, de cultura popular, de criatividade rápida. Quem pode dizer que o povo não poetiza? Quem pensa o contrário está tremendamente enganado.
Foi sob alegria e ansiedade que comecei a falar de literatura com Abaeté e, poucos minutos depois, passei a ouvir, ouvir e ouvir. Eu não me importo de escutar, na verdade, prefiro, pois isso vale ouro. Como dizia Polônio a Laertes, em “Hamlet”: “Presta ouvido a muitos, tua voz a poucos.” (SHAKESPEARE, 2022, p. 30).
Abaeté do Cordel, presidente e fundador da referida Casa, me tratou como uma criança, e como é gostoso receber esse tipo de tratamento. Ele não me infantilizou, ao contrário, me fez, como uma criança, criar ideias, e, recitando seus diversos poemas, afinal, ele já criou mais de 1000 livros de cordel, me fez viajar para onde jamais imaginei. Eu fui à Natal e à lua.
Como se não bastasse ouvir sobre o seu estilo de escrever, o poeta pegou um pandeiro e começou a cantar seus poemas. Começou cantando samba, depois forró e por fim rap. Afirmou o cordelista: “Todo mundo é poeta. O cordel é fácil de escrever, rimar é como respirar. Metrificar é andar no ritmo da vida.”
Sob a presença do poeta, eu próprio um poeta, de fato parecia fácil escrever. E por que parecia? Porque o ambiente todo exalava cultura, e o poeta, ele era a própria cultura. Como não me contagiar? Impossível. A vontade era ouvir mais, viajar mais, mas, tudo o que é bom (e também tudo o que é ruim), passa. Dizia Dom Quixote a Sancho Pança: “Olha, Sancho, um homem não é mais que outro se não faz mais que outro. Todas essas tempestades que nos acontecem são sinais de que logo o tempo vai acalmar e vão nos acontecer coisas boas, porque não é possível que o mal ou o bem durem sempre, do que se conclui que, havendo o mal durado muito, o bem já está perto. Então, não deves te impressionar com as desgraças que me acontecem, pois a ti não te cabe parte delas.” (CERVANTES, 2013, p. 212).
Só de Abaeté, comprei 13 livros. Como sou escritor, não vacilei a oportunidade de pedir um autógrafo. Para a minha surpresa, o poeta deixou um poema registrado: “Ao Felipe e Hayalla/ Um professor fiel/ Veio visitar Natal/ E a Casa do Cordel”.
Após relatar as minhas impressões sobre o cordel, deixo agora que você, caro(a) leitor(a), sinta a força dessa literatura e viaje também.
“Sentei no sofá da sala
Confesso que revoltado
Quanto dinheiro pra copa
Pro cordel nenhum trocado
Ali mesmo adormeci
E sonhei quase acordado”
(Do livro “Lampião pra presidente”, p. 1).
“Decepção na política
O Cascudo resolveu
Formar a sua família
O pai dele faleceu
Ele vai ser professor
Lecionar no Atheneu
O grande mestre Cascudo
Antes de ser professor
Ele já fazia trabalhos
De grande pesquisador
E iniciando também
Sua vida de escritor
Nosso professor Cascudo
Não parou de pesquisar
Virou mestre do folclore
Da cultura popular
E o maior folclorista
É nosso, é potiguar”
(Do livro “Cascudo nosso mestre”, p. 3).
“Paulo Reglus Neves Freire
Assim que foi batizado
Este grande Brasileiro
Recife, seu berço amado
Por seu povo, nordestino
Ele era apaixonado.”
(Do livro “Paulo Freire”, p. 2).
“Eu não aguentava mais
O mal cheiro sufocante
A bebida me matou
Eu pensei por um instante
Estou debaixo da terra
Pelas barbas de sevante.
Levantei a minha cabeça
Foi grande a minha surpresa
Pelo o estrago eu pensei
Foi obra da natureza
Uma voz me respondeu
Provocado por empresa.”
(Do livro “Brumadinho nunca mais”, p. 4).
“Escolas bem equipadas
Professores preparados
Trabalhando com prazer
Sendo bem remunerados
Condições de trabalhar
Para melhor ensinar
Para ser mais respeitados.”
(Do livro “Inclusão social”, p. 3).
Dados biográficos do artista:
Erivaldo Leite de Lima, conhecido popularmente como Abaeté do Cordel, é escritor, compositor, poeta e cordelista. Natural de Sertânia (PE), reside em Natal há mais de 30 anos, cidade que lhe outorgou o título de Cidadão Natelense. Como cordelista, já recebeu várias homenagens e seus trabalhos estão em vários países da Europa.
Miguel de Cervantes. Dom Quixote de la Mancha (vol. 1). Trad. de Ernani Ssó. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2013.
William Shakespeare. Hamlet. Trad. de Millôr Fernandes. Porto Alegre: L&PM, 2022.
Dr. Felipe Figueira
Felipe Figueira é doutor em Educação e pós-doutor em História. Professor de História e Pedagogia no Instituto Federal do Paraná (IFPR) Campus Paranavaí.