Quando um juiz descobre que vai morrer
Domingo à tarde, céu nublado, café coado e um livro de cem páginas nas mãos. Li de uma vez só. Não por falta de tempo, mas por falta de fôlego. A morte de Ivan Ilitch, de Liev Tolstói, não é o tipo de leitura que se faz em capítulos. É o tipo de leitura que se atravessa como quem atravessa um espelho — sem saber o que vai encontrar do outro lado.
Ivan Ilitch é juiz. Um homem correto, eficiente, educado. Viveu como “se deve viver”. Casou-se, teve filhos, comprou móveis bonitos. Fez tudo certo. Só esqueceu de um detalhe: viver de verdade.
Quando descobre que está morrendo, sua dor maior não é física — embora ela exista e seja intensa. A dor é existencial. É o vazio. É a pergunta que ninguém quer fazer: “e se tudo isso foi uma grande mentira?”
A literatura russa, como Tolstói nos mostra, não tem pudor de colocar o dedo na ferida. Ela não escreve para distrair. Escreve para perturbar. Enquanto outras tradições literárias entregam finais felizes, a russa entrega verdades. Verdades pesadas. Às vezes, até demais. Mas, convenhamos, há uma beleza indizível naquilo que é sincero.
Tolstói, Dostoiévski, Tchekhov, Turguêniev — todos beberam da mesma fonte: a alma humana, com suas contradições, dores e silêncios. Na Rússia dos séculos XIX e XX, escrever era uma forma de resistir. Resistir à opressão, à censura, ao absurdo da existência. Cada personagem carregava mais do que uma história. Carregava uma nação inteira em crise de identidade, moral e espiritual.
E é curioso pensar que, mesmo vindo de tão longe — geográfica e culturalmente —, esses autores falam conosco como se estivessem à mesa da nossa cozinha. A morte de Ivan Ilitch poderia acontecer em qualquer escritório de advocacia em São Paulo, em qualquer condomínio em Porto Alegre, em qualquer hospital em Brasília.
Afinal, quem de nós não tem medo de chegar ao fim e descobrir que viveu o rascunho, mas nunca a versão final?
Se você nunca leu literatura russa, comece por aqui. Tolstói não precisa de preparação prévia. Ele prepara você ao longo da leitura. E se você já leu, talvez seja hora de reler. Porque livros como esse não mudam — quem muda somos nós. E, quando mudamos, eles dizem outras coisas.
Boa leitura. E, se puder, leia devagar. A pressa foi o erro de Ivan Ilitch.