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Curiosidade: sede de saber


Por: Josimar Priori
Data: 14/08/2020
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A sabedoria popular ensina que temos muito a aprender com as crianças. Temos a aprender também com filmes infantis, como é o caso da animação franco-belga Kiriku e a Feiticeira, lançada em 1998 e dirigida por Michel Ocelot.  A película se passa na África e narra a jornada do pequeno Kiriku para libertar a sua comunidade da opressão de Karabá, a feiticeira. Entre os muitos aspectos que podem ser destacados, quero tratar sobre a curiosidade, habilidade que se junta ao estranhamento e à desnaturalização como essencial para o desenvolvimento do pensamento sociológico. 

O longa começa com o nascimento de Kiriku, uma criança que fala de dentro da barriga da mãe e que nasce sozinha. Imediatamente, Kiriku põe-se a fazer perguntas e mais perguntas. Ele descobre por meio de sua genitora que há uma feiticeira malvada que domina, oprime e explora a comunidade. Ela teria secado a fonte, comido os homens e saqueado as joias das mulheres. Valente e destemido, o menino imediatamente decide que precisa ajudar. 

No entanto, diferentemente dos adultos, a disputa que ele trava com Karabá não é somente por meio da força física, mas sobretudo pelo conhecimento. Kiriku é imbuído de uma enorme curiosidade, razão pela qual deseja desvelar a qualquer custo porque a feiticeira é má. O primeiro para quem ele faz a pergunta é ao seu tio. Este não sabe responder e nem acredita ser necessário existir um motivo para a maldade dela. Kiriku vai então a um ancião, o qual, depois orgulhar-se de saber tudo, não é capaz de responder seu questionamento e o admoesta conclusivamente: “não se deve fazer perguntas sobre as feiticeiras”. 

Enquanto o tio e o ancião exemplificam os que foram abatidos pelo conformismo e pela resignação, o garoto apesar do desencorajamento segue elaborando perguntas. Ele personifica o sujeito curioso e sedento de saber. Todos nós quando crianças nos portamos dessa maneira. Quem convive com os baixinhos sabe que eles querem ver, cheirar, sentir, degustar, ouvir e conhecer tudo. Uma criança se fascina com cada detalhe do mundo e o explora amplamente usando todos os sentidos. 

No entanto, boa parte de nós, à medida que vamos crescendo, perdemos a capacidade de nos espantar e experimentarmos o mundo. Já não o contemplamos, ele já não nos encanta, não olhamos para o céu, não saboreamos chuva e já não queremos mais “saber tudo”. Como o tio de Kiriku, sentenciamos não haver necessidade de explicação para as coisas e como o ancião desestimulamos os que querem questionar. 

 O filme traz um ingrediente a mais que deve ser incorporado nessa análise. Kiriku descobre, a muito custo, que boa parte do que se falava sobre a feiticeira era mito. Há uma razão para ela se tornar má e nem tudo que se atribui a ela, foi, de fato, por ela feito. Descobre também que o poder da feiticeira vem do medo que ela desperta nos demais e que talvez ela nem seja pior que os outros, mas apenas detenha mais poder. Dessa maneira, o filme demonstra como a concentração do conhecimento em poucas mãos possibilita um sistema de dominação, o qual, para perpetuar sua exploração, se esforça para manter os subalternos na ignorância e silenciar todos aqueles que ousam interrogar e buscar entender mais profundamente o funcionamento das coisas. 

O curioso Kiriku, por sua vez, ilustra aquele que não se resigna, deseja saber e faz do conhecimento obtido um recurso de luta pela libertação. Da mesma maneira, a virtude da curiosidade, muitas vezes tida como incômoda, é ponto de partida essencial para a construção da ciência sociológica. De fato, o estudioso, a exemplo das crianças, precisa duvidar de tudo que se apresenta aos seus sentidos como verdades cristalizadas e indagar-se em cada situação se tais explicações de fato resistem a uma investigação aprofundada. Tal conhecimento nos permite saber mais e melhor, mas também nos libertar dos mitos e da concentração de poder, por meio dos quais se oprime e domina.  

Josimar Priori


Anuncie com Jornal Noroeste
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