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O que não é fé (parte II): psicologização da fé em Freud


Por: Fernando Razente
Data: 04/10/2021
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A psicologia é um campo de estudo complexo e muito fragmentado, pois “Quando falamos sobre psicologia, nós nos referimos a uma mistura complexa de ideias e teorias, muitas das quais são contraditórias.”[1] Buscar uma unidade em qualquer aspecto estudado pela psicologia é correr atrás do vento. Não é possível falar de uma psicologia da fé, mas de linhas de pensamento, de autores dos mais diversos que produziram muitos materiais sobre o assunto, como Francis Galton,  Sir James Fraser, W. R. Inge, Carl Jung, William James, Carl Sagan, Stanley Hall e outros. Para os fins que tenho em mente neste breve artigo, abordar cada um deles seria simplesmente impossível. Por isso, me limitei a analisar apenas um dos grandes pensadores da psicologia que falaram sobre a ideia de fé: Freud. Evidentemente, Freud não reflete todo o pensamento desse campo, apesar de suas teorias fundamentarem grande parte das pesquisas acadêmicas. Dito isso, pensemos no fato de que não é incomum ouvir pessoas altamente inteligentes e bem informadas repetirem espontaneamente a afirmação popular de que a psicologia em geral, e Freud em particular, explicaram definitivamente as origens das crenças religiosas como “nada mais do que um pensamento fantasioso – assobiando na escuridão no vazio do universo, para manter nossos espíritos.” Seria essa uma explicação correta e justa do conceito de fé? Sigmund Schlomo Freud (1856-1939) foi um médico neurologista e psiquiatra criador da psicanálise. Ao longo de suas obras, Sigmund Freud expôs suas opiniões acerca da religião. Mesmo declaradamente ateu, Freud tinha um interesse especial pela problemática religiosa e em pelo menos quatro momentos abordou diretamente o tema: "Totem e tabu" (1913), "Futuro de uma ilusão" (1926), "O mal-estar na civilização" (1929) e "Moisés e o monoteísmo" (1938). Talvez os mais importantes textos aqui sejam os livros de 1926 e 1929. Em "Futuro de uma ilusão", Freud retoma a leitura do sentimento religioso como uma neurose universal ideia inicialmente discutida em um artigo de 1907, "Os atos obsessivos e práticas religiosas"  e procura responder por que os homens, que tanto avançaram na complexidade de suas relações, continuam a depositar fé em Deus. Para Freud, a insistência da humanidade em continuar tendo fé em um Ser espiritual, abstrato e pessoal, era uma espécie de autoengano intencional para fugir da realidade nua e crua. Segundo Geisler e Feinberg, “Sigmund Freud em O Futuro de uma ilusão insistia que a religião é baseada no mero cumprimento de um desejo, que, por sua vez, é a base da ilusão. Tendo em vista as realidades esmagadoras da vida, os homens desejam um tipo de ‘cobertor elétrico’ celestial ou ‘Consolador Cósmico’. Seria gostoso se houvesse um Deus, o perdão, e o céu...”[2]. Em 1930, Freud também apontou para a religião como uma das tentativas de proteger-se contra o inevitável mal-estar proveniente da civilização[3]. Novamente, a fé aparece para Freud como um subterfúgio da realidade e promotora de uma espécie de imaturidade permanente, algo que extrai sua força de um pensamento totalmente irracional arraigado no instinto humano[4]. Particularmente, o que vejo nas ideias de Freud é uma mescla de meia-verdade[5] com ingenuidade. Freud acerta quando diz que existem crentes que usam da fé para não lidar com situações e dilemas da realidade, dilemas que são muitas vezes extremamente duros ou difíceis, como a morte de um ente querido, uma falha moral de um irmão ou marido. Quando a fé é compreendida incorretamente como um escapismo transcendental da realidade imanente, Freud está correto em criticar (apesar de que sendo ateu, não tinha base moral objetiva para fazer isso). Por outro lado, Freud é no mínimo ingênuo ao supor que toda fé se comporta e se comportará necessariamente dessa forma ou como se a essência da fé fosse um ato de neurose contra a razão e a ciência. Como explicar dessa maneira os mais importantes avanços científicos capitaneados por cristãos como Newton, Galilei, Kepler, Linnaeus, Boyle, Maxwell, Faraday, Mendel e outros? De maneira geral, Freud descreveu de maneira muito injusta o conceito de Deus na mente humana como uma simples projeção do desejo infantil de proteção por um pai todo-poderoso. Freud usava o termo “realização de desejos” para se referir à necessidade que religiosos tinham de se sentirem consolados em crer em um Deus inexistente. Ele acrescentou que a religião é uma tentativa de controlar o mundo sensorial, no qual estamos situados, por um mundo que desejamos, que é desenvolvido dentro de nós como um resultado de anormalidades biológicas e psicológicas. Chegou a dizer que a fé é patética e absurda. Um ano antes de sua morte, Freud escreveu para Charles Sanger: “Nem na minha vida privada nem nos meus escritos eu deixei em segredo o fato de ser um completo descrente.” No entanto, suas declarações não tinham sustentação. A fé, de forma alguma era caso concluído para ele, e o fato é que ele era extremamente ambivalente quanto à existência de Deus. Anna Freud, filha de Freud, explicou a única forma de conhecer seu pai: “Não leia suas biografias;” ela instruiu, “leia suas cartas.” Por todas suas cartas, Freud faz afirmações como, “Se algum dia nós nos encontrarmos lá em cima”, “minha única, e secreta oração,” e afirmações sobre a graça de Deus. Durante os últimos trinta anos de sua vida, é curioso notar que Freud manteve uma constante troca de cartas com o teólogo suíço Oskar Pfister (1873-1956). Ele admirava Pfister e escreveu, “Você é um verdadeiro servo de Deus… que sente a necessidade de fazer um bem espiritual para todos que você encontra. Você fez isso por mim também.” Ele, posteriormente, disse que Pfister estava, “na honrosa posição de poder levar homens à Deus.” Será isso apenas formas de expressão? Poderíamos dizer isso de qualquer um, menos de Freud, que alegava que mesmo um ato falho da fala tem um sentido. O que aprendemos aqui    como um prelúdio para o que veremos no último artigo desta série é que a fé não pode ser definida em termos de uma necessidade arbitrária para fugir da realidade; antes, a fé é um atributo ontológico do ser humano. Aprendemos com Freud que não podemos viver sem a realidade da fé, embora possamos lutar contra ela.

 

 

 



[1]MACARTHUR, John. Introdução ao aconselhamento bíblico.  Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2016.

 

[2]GEISLER, Norman L.; FEINBERG, Paul D. Introdução à filosofia: uma perspectiva cristã. São Paulo, SP: Edições Vida Nova, 2009. p. 274.

[3] Freud, S. (1978). O mal-estar na civilização. In Freud, S. [Autor], Coleção Os Pensadores. Tradução de José Octávio de Aguiar Abreu. São Paulo: Abril Cultural. (Obra original publicada em 1930).

[4]Sigmund Freud, New Introductory Lectures on Psychoanalysis, preleção 35 (Nova York: Norton, 1977).

[5]Afirmação que não é falsa, mas em que se oculta alguma informação. Neste caso, não é falso que muitos utilizem da fé como escapismos dos problemas morais da realidade. Mas oculta-se o fato de que nem toda fé segue esse objetivo. A fé cristã, por exemplo, está profundamente relacionada com a realidade e seus dilemas reais.

Fernando Razente

Amante de História, atuante com comunicação e mídia, leitor voraz e escritor de artigos de opinião e matérias jornalísticas.


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