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CRISE VENEZUELANA II: BOA VISTA E OS ABRIGOS


Por: Assessoria de Imprensa
Data: 29/10/2019
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Na segunda reportagem especial para o Jornal Noroeste, Felipe Figueira relata a situação dos abrigos em Boa Vista, capital de Roraima

 

Prof. Felipe Figueira*

Especial para o JN

 

 

A primeira vez que estive em Roraima foi em abril de 2018, fiquei por duas semanas entre Boa Vista, Pacaraima e Santa Elena de Uairén (Venezuela) pesquisando a imigração venezuelana. Por um bom tempo, a saber, entre 2015 e 2017, eu acompanhei o que ocorria em Roraima e na Venezuela, em especial através de revistas e jornais. No entanto, como a minha curiosidade só aumentava, resolvi conhecer pessoalmente o que acontecia no extremo norte do Brasil.

Quando cheguei a Boa Vista, tive um choque de imediato, pois as ruas estavam abarrotadas de pessoas dormindo no chão. As praças? Um caos terrível. A praça Simón Bolívar, por exemplo, que fica próxima da rodoviária internacional José Amador de Oliveira, tinha mais de 1500 pessoas aglomeradas. E isso era em todas as praças.

O tempo se passou desde a minha primeira ida a Roraima e muita coisa ocorreu/modificou, e eu passei, como de início, a acompanhar os acontecimentos no extremo norte do país, em especial, através de revistas e jornais. Porém, agora eu também tinha contato (vários contatos!) com moradores locais e com alguns imigrantes. Acontece que a minha curiosidade, como da primeira vez, continuou a se expandir, e eu vim pela segunda vez a Boa Vista, Pacaraima e Santa Elena, também para ficar quase duas semanas, para ver por mim mesmo como está a situação dos imigrantes venezuelanos.

Em reportagem anterior, do dia 25/10/2019 (sexta-feira), abordei a situação de Pacaraima. Neste texto, abordarei a situação de Boa Vista. E falando sobre a capital de Roraima, algo de imediato me espantou ao chegar próximo à rodoviária de Boa Vista: a praça Simón Bolívar, que chegou a “abrigar” 1500 pessoas e estar cercada por tapumes, agora se encontra sem a presença de nenhum venezuelano e sem os referidos tapumes. Motivo? As praças agora não podem mais ser ocupadas como outrora e há 12 abrigos ao redor da capital para receber as pessoas. Quando estive em abril de 2018, eram apenas 6 abrigos. É certo e visível que ainda há inúmeros imigrantes nas ruas, e que os abrigos são insuficientes, porém, o caos nas praças e nas ruas teve alguma melhora.

Os responsáveis pela criação, manutenção e segurança dos abrigos são, em especial, o Exército e a ACNUR (Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados). Cada local de acolhida recebe uma média de 1000 a 1500 pessoas. São lugares provisórios, que servem para uma primeira recepção em solo brasileiro até que as pessoas possam ou voltar para o país de origem, ou ficar em Roraima mesmo ou serem interiorizadas em diversos estados brasileiros. O nome da operação que faz todo esse trabalho é Operação Acolhida.

Os abrigos são todos fechados, sendo que para tirar foto de seu interior é necessário, a depender, de uma autorização direta do comandante local do Exército (em Pacaraima, consegui autorização para fotografar o abrigo diretamente do coronel) e/ou de uma autorização da Casa Civil e da ACNUR (caso dos abrigos de Boa Vista). Logo se vê que há todo um procedimento que visa proteger o imigrante, o refugiado, porque muitos, senão todos, se encontram em situação de vulnerabilidade, além do que há várias e várias crianças e adolescentes nesses locais, o que aumenta a preocupação com a imagem dessas pessoas.

Hannah Arendt (1906-1975), filósofa alemã, dizia que a escola é fechada não porque quer ser fechada, mas por necessidade. O que isso quer dizer? Que a escola é um local de formação que lida com pessoas em desenvolvimento, e que toda preocupação e cuidado são necessários. A referida filósofa, perseguida pelo nazismo, se refugiou nos Estados Unidos na metade do século XX. Dela podemos ler, em especial, os seguintes textos: “A crise na educação” e “Nós, os refugiados” (ambos de domínio público). Trabalhando por analogia, os abrigos são fechados não porque querem ser fechados, mas por necessidade, porque cuidam de pessoas que carecem de cuidados e muitas vezes em estado lastimável.

Aqui, todavia, cabe um questionamento: tamanha burocracia para entrar e fotografar os abrigos não esbarraria em outro direito fundamental garantido pela Constituição Federal, a saber, o direito de informação (CF, art. 5º, XIV)? Até é possível dizer que sim, porque alguns obstáculos burocráticos esbarram em certas questões pontuais, como o tempo. Há todo um tempo para processar a burocracia que às vezes obsta o trabalho do jornalista, do pesquisador. Então, talvez seria o caso de um canal de comunicação, de um pessoal de relações públicas, um pouco mais célere. Com essa “simples” correção, quem sabe o direito à informação seria um pouco mais efetivo no que tange a conhecer um pouco melhor os abrigos.

Problemas à parte, afinal, algo de tamanho vulto sempre terá problemas, a saber, a massiva entrada de imigrantes no Brasil, a Operação Acolhida tem trazido relativa melhora à capital de Roraima. E essa melhora se dá também porque se trata de um trabalho em conjunto, que congrega o Exército, a Guarda Nacional, Universidades, a ONU (através da ACNUR), diversas ONG’s e instituições estaduais e federais (como a Polícia e a Receita).

Diante da complexidade acima mencionada, resta dizer que a situação que ocorre no extremo norte do Brasil diz respeito não só aos roraimenses, mas a todos os brasileiros. No noroeste do Paraná, por exemplo, já há a presença de venezuelanos, como em Paranavaí (a Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, “Igreja dos Mórmons”, já trouxe 4 famílias e outras mais estão chegando), Maringá (algumas empresas estão a contratar vários venezuelanos) e Goioerê (cuja ONG, Aldeias Infantis SOS, já acolheu mais de 200 pessoas do país caribenho).

É preciso, portanto, um olhar mais cuidadoso à temática da imigração, porque esse olhar permite uma maior compreensão em relação a um fenômeno tão complexo, e, como dizia Hannah Arendt, em momentos de crise não devemos responder com preconceito, mas com conhecimento, com criticidade, indo à raiz do problema. Dito em outras palavras, o olhar mais cuidadoso que menciono é capaz de transformar uma situação difícil em algo valioso. É essa a minha esperança, a saber, que a pluralidade enriqueça a todos.

 

Boa Vista, 25 de outubro de 2019.

 

Felipe Figueira é Doutor em Educação e Pós-Doutor em História. É professor de História e Pedagogia no Instituto Federal do Paraná (IFPR), Campus Paranavaí. Desde 2015 tem realizado diversas viagens pelo Brasil e pelo mundo, seja para verificar aspectos há muito lidos, seja para acompanhar situações que, devido aos personagens não terem voz, dificilmente serão narradas em livros. É autor de “Nietzsche e o Eruditismo” e “Entre médicos e imigrantes”, ambos pela Editora CRV. Email: felipe.figueira@ifpr.edu.br


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