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“Você dá aula?”


Por: Assessoria de Imprensa
Data: 13/03/2020
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Há uma expressão bastante frequente em torno da docência e que todo professor certamente já ouviu e também falou: “você dá aula onde?” e “hoje darei aulas”. Porém, por que o uso do verbo dar quando, na verdade, trata-se de um trabalho remunerado? Eu próprio, professor, às vezes me pego utilizando esses verbos, mas trato o mais rápido possível de dizer “vou ministrar”, “eu leciono”, “ensinarei em tal horário”.

Pode parecer um preciosismo a substituição do verbo “dar” para “ministrar” ou “lecionar”, mas não é. A docência, conforme afirma o filósofo alemão Theodor Adorno (1903-1969) no clássico texto “Tabus acerca do magistério”, é de longe marcada por dois grandes tabus (ou estigmas): a fome e a regularização precária. E, segundo o mesmo filósofo, a docência ainda se encontra historicamente associada à figura do lacaio diferenciado na antiguidade (em termos objetivos, o lacaio era um escravo com boas habilidades intelectuais).

O lacaio, sendo ele no mais das vezes um escravo, trazia em si a figura de alguém simples e desprovido de bens materiais. Nesse sentido, tal professor não raro flertava com a fome, pois, vindo de uma classe extremamente baixa, dificilmente conseguia lugar de destaque na sociedade, bem como a sua remuneração ou era inexistente ou ínfima.

É possível polemizar e comparar sem vitimismos a imagem do lacaio com a do professor brasileiro do século XXI: os concursos para docente, em especial os destinados à educação infantil, trazem uma remuneração muito baixa diante da qualificação exigida (magistério, no mínimo). Logo se vê, por incrível que pareça, que a situação que ocorria, por exemplo, entre os gregos em torno do lacaio, bem pode se repetir com o professor do século XXI indicado, pois este pode flertar com a fome também (traduzindo, flertar com condições materiais precárias).

Acontece que o professor traz em si a imagem do lacaio como uma espécie de ancestral, uma espécie de pai primitivo. O lacaio, segundo Adorno, deixa de existir enquanto um escravo, mas, no período da Idade Média (476-1453), a educação fica a cargo da Igreja Católica, em especial dos monges. Os monges, por sua vez, também trazem em si a imagem da simplicidade e eram eles os responsáveis pelo ensino ao longo de muitos anos da história ocidental europeia. 

Quando acontece a grande ruptura com a Igreja Católica por parte dos protestantes, movimento este conhecido como Reforma Protestante (simbolizado pela figura de Lutero que, em 1517, prega as suas 95 Teses na porta da igreja de Wittenberg, na Alemanha), os pastores passam a ministrar também o ensino, a educação, em especial com o intuito de ensinar a Bíblia.

Nesse momento há um dado interessante e que é preciso destacar: tanto o padre (monge) quanto os pastores davam aulas para os fiéis (de dar, no sentido de gratuidade), para que estes fossem evangelizados. O padre ou o pastor geralmente quando não estavam exercendo as funções ministeriais, isto é, no tempo livre, davam aulas. A aula, portanto, não era a função primordial daqueles que as davam. Traduzindo: o sujeito primeiro era padre/pastor e, só então, passava a ser professor. Provavelmente é desse período a origem da ideia de “dar” aulas e essa expressão ficou para a posteridade. 

O que acontece é que a profissão professor evoluiu muito com o passar dos anos, apesar da falta de regulamentação (leis) em torno da docência. Há várias entidades que cuidam dos interesses dos professores, como sindicatos, mas, nem por isso, é possível dizer que os docentes possuem um conselho forte como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) ou o Conselho Regional de Medicina (CRM), a título de exemplificação. Porém, e isso é importante destacar, o professor do século XXI não é mais aquele que “dá” aulas e tampouco aquele que possui um ofício primário e mais importante para, só então, de forma caridosa ensinar (eis aqui uma das faces do aspecto vocacional da educação).

Pelas razões apontadas no presente texto é que o que poderia parecer um preciosismo, a saber, distinguir “dar” de “ministrar” é tão importante. O professor fica anos nos bancos escolares e, é possível afirmar, destes jamais sai. A docência é uma profissão.

Felipe Figueira é doutor em Educação e pós-doutor em História. Professor de História e Pedagogia no Instituto Federal do Paraná (IFPR) Campus Paranavaí. 


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