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Travessias


Por: Dr. Felipe Figueira
Data: 04/11/2021
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Júlia Rocha. Pacientes que curam: o cotidiano de uma médica do SUS. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2021.

Saúde é um direito![1] – por Felipe Figueira & Hayalla Figueira

 

            O livro de Júlia Rocha é um “Viva o SUS!” no sentido mais amplo possível. Ele é um trabalho que, como o subtítulo diz, trata-se do “cotidiano de uma médica do SUS”. Tendo em vista o título e o subtítulo, é preciso destacar desde o início que, para a médica, saúde é um direito e não uma caridade do Estado ou do profissional. Para quem considera essa ideia absurda e cheia de senso comum, é porque desconhece a história brasileira e a pobreza, onde até hoje saúde é vista enquanto um favor. Não, não é um favor, é um direito, e Júlia procura fazer de seu cotidiano um exemplo disso.

            Há quem preconceituosamente diga: “se nada der certo eu vou para o postinho e me torno clínico geral”. Não, meu caro, e não, minha cara, esse é um pensamento errado. Para ser um clínico geral de verdade (dizemos isso porque há muitos de mentira) você precisa saber do seguinte: você só será esse profissional se muitas coisas derem certo em sua vida, e não se diz postinho, não se diminui um lugar tão grande, que lida com milhares de seres humanos, ainda que você não enxergue essas vidas como de fato vidas. Sim, nós sabemos que há quem fale a bobagem acima por ignorância e não por má-fé, mas eu me iro com isso, pois a linha entre uma situação e outra é tênue. A saúde é um direito e não um favor.

 

Orientações feitas, medicamento prescrito. Retorno marcado para uma semana depois. Regina voltou caminhando sem ajuda, sem dor, sorrindo e me trazendo um queijo. A neta ligou para a família em Salvador e disse que eu faço milagre.

“Não é milagre. Isso é ciência.

E ela explicou.

“O remédio é ciência. O milagre foi minha vó encontrar você.”

Eu chamo isso de direito. (ROCHA, 2021, p. 43-44).

 

            “Pacientes que curam” traz histórias que nos fazem chorar. Casos trágicos de abusos e de maridos agressivos; casos de negligência médica, onde pacientes reclamavam de dores e de angústias da alma e não eram ouvidos, ou simplesmente medicados (dopados, muitas vezes). Há quem, tendo olhos, não vê, e tendo ouvidos, não ouve. O médico, o médico de verdade, deve ouvir e ver bem – e falar quando convir. É de chorar de tristeza o descaso de certos profissionais, mas, também, é de chorar de felicidade ao ver certas pessoas amarem a profissão e nela fazerem a diferença. Ficamos a imaginar Albert Schweitzer...

            Júlia Rocha não faz de seu livro apenas um apanhado de histórias com um forte apelo sentimental. O seu objetivo mais profundo não é esse, mas de promover a humanização dos profissionais da saúde e de enxergar vida onde de fato há vida. Júlia não entra no discurso fácil de que o médico detém o saber científico e de que saúde é ausência de doença. Não, esse simplismo é empobrecedor e a vida é rica. O que a médica faz é uma análise complexa sobre a sociedade. Ela, médica de família e comunidade, parece uma socióloga, pois olha o paciente a partir da sociedade, claro que sem desprezá-lo em suas reclamações físicas. Não há sentido a boa vontade sem a técnica. O sentido sociológico mencionado é porque a médica sabe o peso das pressões sociais sobre os corpos, ela sabe que o machismo adoece as pessoas e que o feminismo é uma postura pró-saúde.

            Uma questão profunda de “Pacientes que curam” é que o médico deve entender a linguagem do paciente. É de Júlia, por exemplo, a crítica a um médico, em 2016, que debochou de um paciente que disse que tinha “peleumonia”. A médica, em crítica ao colega de profissão, respondeu (o trecho abaixo não se encontra no livro, mas em suas redes sociais):

 

“EXISTE PELEUMONIA.

Eu mesma já vi várias. Incrusive com febre interna que o termômetro num mostra. Disintiria, quebranto, mal olhado, impíngi, cobreiro, vento virado, ispinhela caída. Eu tô aqui pra mode atestá. Quem sabe o que tem é quem sente. Eu quero ouvir ocê desse jeitinho. Mode a gente se estendê. Por que pra mim foi dada a chance de conhece as letra e os livro. Pra você, só deram chance de dizê.

Pode dizê. Eu quero ouvir.”

 

            E qual a importância do médico entender a linguagem do povo, a linguagem do seu público? Para que a saúde seja promovida, para que a humanização seja real. É nesse horizonte que se pode perceber algo que se torna patente na obra: a defesa de políticas públicas que se convertam em melhorias efetivas para a população. Uma dessas políticas públicas que se extrai do espírito do livro é em torno das cotas raciais e sociais para o ingresso nas universidades públicas e, também, outras formas de acesso e permanência à educação. E por que isso? Para que a educação superior aos poucos seja menos elitizada e que das periferias passem a sair (e a voltar!) médicos que de fato saibam o apelo do seu povo. É claro que se a educação não for libertadora, o sonho do oprimido, como dizia Paulo Freire, é se tornar opressor, mas daí estenderíamos por demais a discussão. É preciso saber dimensionar o peso que possuem as estruturas racistas, machistas, fascistas, elitistas, pois elas também adoecem as pessoas. Não é só a genética que leva alguém à morte, a exploração também mata.

 

O neoliberalismo deseja mercantilizar todos os aspectos da vida. Não deve haver sobre a face da Terra nada que não possa ser chamado de mercadoria. Produto. Qualquer mínima chance de explorar até a última gota de sangue dos mais pobres será aproveitada sem piedade.

Tomar consciência de algumas coisas faz a gente se tornar radical. Ser radical não é necessariamente ser violento. Eu, por exemplo, sou radical e sou um amorzinho. Posso provar. Ser radical, radicalizar o pensamento, é não admitir que um trabalhador não possa descansar e cuidar da sua saúde em paz sem perder o emprego ou o salário do mês. Radicalizar é não admitir nenhuma exploração. Nenhuma opressão.

Não há problema em ser radical. Não há conciliação possível quando o outro lado não se importa com a nossa vida. (ROCHA, 2021, p. 261-262).

 

            Albert Camus, em “A peste”, fez um duro diagnóstico da humanidade, sendo que esta (uma parte desta, a bem da verdade) tantas vezes ama e promove o mal. Nessa obra, havia um capitalista que, quando a peste estava no fim, ficou triste e irado, pois havia lucrado com o medo e com a morte. A pandemia de covid-19 dá mostras e mais mostras de que a peste é lucrativa. Não são poucos os grandes empresários que dizem aos seus funcionários: “Trabalho está em falta. Há milhares na fila de espera”. E, assim, os empregados passam a ser mais facilmente castigados.

            Seja a profissão que for, é importante “ligar os pontos” (ROCHA, 2021, 177). Um historiador precisa dar vida à história; um profissional do direito precisa vivificar a lei; um professor precisa ver os alunos; e um médico precisa ver o paciente. Ver. Ver de verdade.

 

Júlia Rocha. Pacientes que curam: o cotidiano de uma médica do SUS. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2021.



[1] Resenha originalmente publicada na Revista Espaço Acadêmico, edição n. 231, nov./dez. 2021.

Dr. Felipe Figueira

Felipe Figueira é doutor em Educação e pós-doutor em História. Professor de História e Pedagogia no Instituto Federal do Paraná (IFPR) Campus Paranavaí.


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