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“Os escritores que eu matei”, de Marco Severo


Por: Dr. Felipe Figueira
Data: 10/12/2020
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Marco Severo. Os escritores que eu matei. Belo Horizonte: Editora Moinhos, 2019.

Dar-me-ei ao luxo de escrever uma resenha heterodoxa sobre o livro de Marco Severo. A resenha será por meio de aforismos.

 

1. Que choque é saber que, se o leitor for disciplinado, sistematicamente disciplinado, e ler dos 15 aos 80 anos, só lerá 3410 obras. Eu digo só porque basta uma ida à biblioteca mais próxima para ver que há mais de 3 mil livros à disposição. Mas, convenhamos, ninguém passará a vida só lendo, por mais interessante que seja ler. Da minha parte, que leio pausadamente, talvez eu alcance a marca de uns 2 mil livros. À parte esses números assustadores trazidos por Severo na crônica “As leituras possíveis de uma vida”, ao menos um livro do cronista cearense figurará em meu rol de leituras de uma vida.

 

2. Minha biblioteca pessoal tem aproximadamente 2 mil livros. Se pensarmos que eu tenho 32 anos, a quantidade anterior não deixa de impressionar. Entre meus livros, alguns são clássicos, como “Ilíada”, “Odisseia”, “Dom Quixote” e “Lusíadas”, além do que, tenho em luxuosas edições as obras completas de Shakespeare (em inglês) e “A Divina Comédia” (em italiano). No entanto, eu me pergunto: será que lerei minhas luxuosas edições dos clássicos, ou elas só servirão de enfeite? Severo assevera: “A verdade é que os clássicos continuarão a existir nas bibliotecas ao redor do mundo, e continuarão a ser vigorosamente estudados e recomendados. Mas também continuarão fadados a serem adquiridos em versões lindas, luxuosas, prontas para serem colocadas na prateleira da sala e relegadas ao mais completo esquecimento” (SEVERO, 2019, p. 22).

 

3. Por vários fatores, não tenho publicado meus livros cronologicamente. Em alguns momentos isso me incomoda, pois eu vejo um trabalho do “Felipe mais velho” ser publicado antes de um do “Felipe mais novo”. Isso pode confundir o leitor e a ideia de uma crescente em qualidade torna-se difícil de ser vista. Não obstante, quem disse que o que vem depois é melhor do que o que foi criado antes? É preciso que o escritor se livre dessa “cobrança autoimposta” (SEVERO, 2019, p. 25).

 

4. No dia em que sonhei que vencia pela segunda vez o Prêmio Jabuti, eu dizia a várias pessoas: “esse é o Óscar da cultura brasileira”, mas, eis que ao acordar, recebo um balde de água fria: “O sucesso que vem pra uns, que pra alguns é obra divina, pra outros nada mais é do que a grandiloquente aleatoriedade da vida – desde nossa concepção até a hora do desembarque – e lutar contra isso é grotesco. Seja o que for, é algo que nossa inteligência não alcança e provavelmente jamais alcançará. Não adianta espernear, passar noites insones tentando compreender – vamos tratar de viver a vida sem tentar buscar essa resposta, até porque outras perguntas, mais urgentes, têm vindo à tona. E elas sempre vêm” (SEVERO, 2019, p. 47). Todavia, eu sei o quão peculiar é adquirir algum sucesso, algo retratado dramaticamente por Nietzsche: “Somente um tolo: os tolos têm sucesso” (NIETZSCHE, 2011, p. 244). Pegadinha: Os tolos fazem sucesso; Nietzsche é um sucesso editorial (ainda que não tenha sido em vida); logo, Nietzsche é um tolo? Não, aí é distorcer demais a crítica do filósofo à mediocridade cultural que imperava em sua época.

 

5. Gosto de ler crônicas, da forma com que os escritores conseguem passear por tantos temas e, ao mesmo tempo, darem uma unidade a uma obra tão díspar. Por mais que o livro de Severo seja sobre o universo literário, ele não deixa de trazer vários temas à baila. E nisso quem baila é o leitor, que não consegue ficar parado, pensando em um assunto só. Um desses assuntos trazidos é o empréstimo de livros. Ele diz emprestar todos os livros que possui, menos os autografados. Eu não sou tão altruísta assim, na verdade, estou longe desse tipo de altruísmo. Vejo meus livros como ferramentas de trabalho e, como sou professor, preciso dessas ferramentas. Por que vou emprestar (muitas vezes, tragicamente dar) aquilo que me é fundamental? Por que ei de comprar inúmeras vezes as mesmas coisas? Sou um Sísifo? Não significa, todavia, que eu nunca empresto, na verdade, até empresto, mas sob mil admoestações. E só empresto se eu realmente souber que a pessoa não pode comprar. Se ela pode, por que não compra? O que custou para mim deve custar para ela também. Rainer Maria Rilke, quando questionado por Franz Kappus, se poderia dar alguns de seus livros, respondeu: “Por fim, no que diz respeito a meus livros, adoraria lhe enviar todos os que poderiam trazer alguma alegria para o senhor. Mas sou muito pobre, e meus livros não me pertencem mais, desde que foram publicados. Eu mesmo não posso comprá-los e, como gostaria de fazer com frequência, dá-los para as pessoas que lhes demonstrariam afeição” (RILKE, 2013, p. 39). Percebo que ao escrever estas linhas estou com raiva, pensando no tanto de livros que perdi praticando a bondade. Diz Marco Severo que emprestar livros é “uma arte” (SEVERO, 2019, p. 68). Nesse ponto, caro cronista, estou longe de ser um artista.

 

6. Gosto de ler textos que versem sobre o processo de escrita. Entre os meus divertimentos literários, estão: “Como escrever bem”, de William Zinsser, e “Cartas a um jovem poeta”, de Rilke. O livro de Severo bem figurará entre os meus divertimentos, pois, com humor e acidez, coloca contra a parede aspirantes a escritor (e escritores consagrados) que mais têm pose do que poesia entre as palavras: “Pelas afirmações do entrevistado, o leitor da matéria tem a nítida impressão de que estamos dando a conhecer um Shakespeare das letras brasileiras, inclusive com todos os medos, receios, inseguranças, faniquitos e pseudo-humildades inerentes a todos os que, no fundo, querem dar a entender que estão escrevendo uma grande obra. Pose, muita pose. Mas estão ali, firmes! São verdadeiros arautos da Nova Grande Literatura Brasileira (quiçá universal. Aliás, quiçá não, no seu devido tempo, universal sim, com certeza! Pelo menos segundo estes incautos literatos)” (SEVERO, 2019, p. 99). Que eu caia e quebre a fuça antes de conceder uma entrevista assim tão ridícula!

7. Um medo: o nome do livro de Severo é “Os escritores que eu matei”. Pensara eu que esse título era somente simbólico, mas tem uma carga literal. Vários escritores com que o cronista se correspondeu, de Sidney Shedon a Moacyr Scliar, passando por Fernando Sabino e Mario Puzo, morreram pouco tempo após a troca de cartas. Agora vem o meu medo: Marco Severo e eu temos nos correspondido; seria ele ou eu o mensageiro da morte nesse caso particular? Espero que nem um e nem outro e que ambos vivamos mais, bem mais do que nossas parcas três décadas. Quero estar na lista dos que resistiram à troca de mensagens com o cronista e compor o seleto grupo de “O Mistério” (SEVERO, 2019, p. 131). Amém.

 

 Dr. Felipe Figueira

 

 

 

Dr. Felipe Figueira

Felipe Figueira é doutor em Educação e pós-doutor em História. Professor de História e Pedagogia no Instituto Federal do Paraná (IFPR) Campus Paranavaí.


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