Sétima Arte - Flow
Não é só o Brasil que vive a expectativa pelo Oscar. A Letônia, um país pouco conhecido no norte da Europa, tem despertado a atenção dos fãs da Sétima Arte ao redor do mundo. Embora não tenha tradição na produção de grandes obras cinematográficas, o país celebra o sucesso de uma animação que vem conquistando destaque em festivais e mostras internacionais. Prova disso é que o filme levou o Globo de Ouro de Melhor Animação e agora concorre ao Oscar de Melhor Filme Internacional ao lado do nosso Ainda Estou Aqui. Na coluna desta semana, vamos conhecer mais sobre Flow, essa animação que tem encantado o público e acaba de chegar aos cinemas.
Há algo de mágico quando uma animação nos transporta para um mundo onde as palavras não são necessárias. Flow, dirigido por Gints Zilbalodis, é uma dessas raras pérolas cinematográficas que nos envolvem sem precisar de um único diálogo. Em um cenário pós-apocalíptico onde a humanidade parece ser apenas uma lembrança distante, acompanhamos a jornada de um gato solitário que, após uma inundação devastadora, se vê forçado a atravessar um mundo submerso, encontrando aliados inesperados pelo caminho. Mas mais do que uma história de sobrevivência, Flow nos convida a refletir sobre a coletividade, a adaptação e a beleza de se perder para poder se encontrar.
Desde as primeiras animações, nos primórdios do cinema, os animais sempre foram protagonistas cativantes. No entanto, a abordagem de Flow foge completamente da cartilha das megaproduções hollywoodianas. Talvez por isso seja o grande favorito ao Oscar de Melhor Animação deste ano, desbancando produções muito mais caras dos estúdios tradicionais. Se em Zootopia os animais são humanizados ao ponto de se comportarem como nós, Zilbalodis opta pelo caminho inverso: seu elenco de personagens age puramente por instinto. O gato que conduz a narrativa é independente e desconfiado; o cachorro, leal e brincalhão; a garça, orgulhosa e reservada. Mesmo sem diálogos, compreendemos suas personalidades por meio de gestos, olhares e reações. A comunicação ocorre de maneira primitiva, quase intuitiva, e isso torna a experiência ainda mais envolvente.
Essa decisão também amplifica a imersão do espectador. Flow não nos oferece explicações diretas ou regras claras sobre seu universo; ao contrário, desafia o público a descobrir suas nuances junto ao protagonista. O silêncio das falas é compensado pela expressividade dos personagens e pela trilha sonora, composta pelo próprio diretor, que usa sons suaves e sutis para guiar as emoções.
Visualmente, Flow se destaca pelo minimalismo. A animação 3D foge do hiper-realismo e aposta em cores desbotadas, texturas simples indo completamente na contramão de obras aclamadas dos últimos tempos. Esse estilo visual não apenas confere à obra um ar de mistério, como também reforça a sensação de isolamento e descoberta. O cenário, dominado por ruínas e paisagens alagadas, sugere um mundo que foi tomado pela natureza, uma reflexão silenciosa sobre as mudanças climáticas e as consequências da ação humana.
A escolha de manter a câmera sempre na altura do gato é um detalhe brilhante. Isso obriga o expectador a enxergar o mundo pela perspectiva do gato, sentindo sua fragilidade diante de desafios gigantescos. Quando ele encara uma tempestade ou se vê diante de criaturas marinhas imensas, a escala do perigo se torna ainda mais palpável. O diretor usa essa abordagem para reforçar a sensação de pequenez do indivíduo frente às forças da natureza – e, ao mesmo tempo, nos lembra de que até os menores seres podem encontrar força na coletividade.
Um dos elementos mais simbólicos do filme é a própria água. Desde a cena inicial, quando o gato observa seu reflexo num espelho d’água, até o momento em que a enchente transforma sua vida para sempre, a narrativa conduz o público por um ciclo de transformação. Tradicionalmente a água é um símbolo de mudança, seja para a religião, para filosofia ou para várias doutrinas – o filósofo pré-socrático Heráclito, por exemplo, já dizia que “ninguém se banha duas vezes no mesmo rio”. Em Flow, essa máxima é levada ao extremo, pois a enchente não apenas modifica a paisagem, mas também força os personagens a se reinventarem.
O gato, inicialmente um sobrevivente solitário, precisa abandonar sua zona de conforto e aprender a confiar em outros para seguir em frente. Seu arco de desenvolvimento não é marcado por grandes discursos ou revelações melodramáticas – mas sim por pequenas atitudes, como aceitar a companhia do cachorro ou dividir espaço no barco com os outros animais. Cada interação é um passo em direção ao desconhecido, um aprendizado sobre convivência e adaptação.
Ao longo da jornada, Flow brinca com a estrutura das grandes aventuras épicas. Se formos reduzi-lo a sua essência, temos um clássico road movie – mas, em vez de estradas, os personagens navegam por rios formados pela inundação. Há encontros e despedidas, desafios que testam sua resistência e momentos de contemplação que nos lembram da vastidão do mundo.
Ao contrário das animações que buscam comover com discursos grandiosos, muitas vezes verborrágicos, Zilbalodis aposta na delicadeza. Flow não força ninguém a sentir nada, apenas convida a observar e interpretar. Sua mensagem não é entregue de maneira mastigada, mas está ali, nas entrelinhas dos olhares trocados, nas pausas silenciosas, na relação que se constrói sem palavras.
E essa é talvez a maior qualidade do filme, sua capacidade de transmitir emoções puras sem precisar de artifícios óbvios. A amizade entre o gato e o cachorro, por exemplo, não é construída com piadas ou momentos exagerados, mas sim com pequenos gestos, como quando o cachorro insiste em brincar mesmo diante do perigo ou quando o gato, relutantemente, permite que ele se aproxime. Flow é uma lufada de frescor no universo das animações. Em um mar de produções que apostam em cores vibrantes, roteiros acelerados e personagens falantes, essa obra nos lembra do poder do silêncio e da simplicidade. É um filme que não grita suas mensagens, mas as sussurra.
Por que ver esse filme? Para aqueles que buscam um espetáculo visual repleto de ação frenética e piadas, talvez Flow pareça estranho em um primeiro momento. Mas para aqueles dispostos a se deixar levar por sua atmosfera contemplativa, ele se revela uma das animações mais poéticas e impactantes dos últimos anos. Tanto que, ao final, quando os créditos sobem, a sensação que fica é a mesma de um sonho que gostaríamos de prolongar um pouco mais. Flow merece ser visto no cinema porque é um convite para redescobrir o mundo pelos olhos de um gato, sentir o vento, o frio da água e a incerteza do amanhã. E, acima de tudo, é um lembrete de que, mesmo em tempos difíceis, não precisamos navegar sozinhos. Boa sessão!