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O Menino e a Garça


Por: Odailson Volpe de Abreu
Data: 01/03/2024
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Existem profissionais que ao longo da vida se tornam referência de excelência na área que atuam, no mundo do cinema não é diferente. Existem diretores que sempre que lançam uma nova obra abalam não apenas Hollywood, mas o mundo. Na animação, uma área específica da Sétima Arte, não é diferente! Se Walt Disney (o homem, não a empresa) foi por décadas sinônimo de excelência para animação no Ocidente, pode-se dizer que o mesmo é atribuído para Hayao Miyazaki no Oriente. Mas existe uma sutil diferença entre os dois, a complexidade das histórias de Miyazaki agrada muito mais os adultos do que as crianças. Após uma verdadeira saga para conseguir ver num dos cinemas da região um dos filmes mais esperados do ano, essa semana comentarei um pouco mais sobre o franco favorito ao Oscar de Melhor Animação, a obra mais recente de Miyazaki, o fantástico O Menino e a Garça.

Em um impactante retorno aos longas-metragens de animação após uma década de ostracismo, o lendário cineasta Hayao Miyazaki, co-fundador do renomado Studio Ghibli, presenteia o mundo com O Menino e a Garça. Este filme, exibido na abertura do prestigiado Festival de Toronto 2023, marca a primeira vez na história que uma animação é escolhida para abrir o evento. Miyazaki, que anunciou a aposentadoria após o belíssimo Vidas ao Vento em 2013, surpreendeu a todos ao retornar com intensidade, adaptando a obra de Genzaburo Yoshino, Como Você Vive? ao formato de animação.

A trama, desdobrando-se ao longo de duas horas, estabelece uma jornada do herói que mergulha em metáforas sobre amizade, dor e luto. Em meio aos desafios da Segunda Guerra Mundial no Japão, Mahito enfrenta a perda prematura de sua mãe, resultando em sua mudança para a propriedade rural da família. Nesse novo lar, estranhos acontecimentos o conduzem a uma antiga torre isolada, habitada por uma misteriosa garça cinzenta. Essa criatura concede-lhe acesso a um mundo fantástico, onde os limites entre os vivos e os mortos se entrelaçam. Enquanto tenta superar a presença da nova madrasta, Mahito se depara com um portal mágico quando esta desaparece. Acompanhado pela curiosa garça, ele embarca numa extraordinária jornada, revelando um universo repleto de desafios e situações inimagináveis, proporcionando uma experiência única e envolvente.

Com essa história fantástica, Miyazaki transforma conflitos familiares em propulsores narrativos, explorando o comum da trajetória humana, repleta de erros e acertos, mas sempre equilibrada por elementos ao nosso redor. A intensidade do ritmo, refletida nos embates que permeiam as ações, mantém o espectador hipnotizado, incapaz de desviar o olhar da tela. É possível afirmar que o filme, talvez a animação mais fantástica e adulta de Miyazaki desde Nausicaä do Vale do Vento, de 1984, tece uma narrativa complexa de amadurecimento.

Considerado um dos filmes mais caros produzidos no Japão, O Menino e a Garça emerge como forte concorrente ao Oscar de Melhor Animação, potencialmente marcando a segunda vitória do diretor nessa categoria. Impossível esquecer o inédito Oscar de 2003, quando A Viagem de Chihiro, uma das obras mais singulares de Miyazaki, surpreendeu ao mundo com beleza, encantamento e mistério. Após esse filme, o olhar do Ocidente para os animes nunca mais foi o mesmo. Agora, Miyazaki, ao plasmar seus sonhos no papel, prova que continua sendo um inabalável elo entre a imaginação e a realidade de uma maneira que os estúdios ocidentais nem sonham em ser, mantendo viva a essência de seu renomado Studio Ghibli.

Nesse filme, a dualidade entre fantasia e realidade se desenrola de maneira sublime, desafiando as convenções lineares. Miyazaki, habilmente, incorpora elementos mágicos ao enredo, apresentando criaturas que oscilam entre o maléfico e o benevolente, o engraçado e o assustador. Uma trama que faz lembrar brevemente a história Alice no País das Maravilhas ao adentrar a toca do coelho. Mahito se vê imerso em uma montanha-russa imaginativa, onde a peculiaridade e o perigo coexistem. Não dá para negar que O Menino e a Garça exerce um efeito alucinógeno junto ao público à medida que eventos exotéricos se desdobram, criando uma competição interna para identificar a manifestação mais bizarra.

Mesmo que eu tenha uma preferência pelo título original, o nome em português ainda se mostra muito eficaz, revelando o tema central e sintetizando a experiência do filme. A obra, no entanto, não poderia ser autêntica do Studio Ghibli sem o toque característico de fábula e humor peculiar. Miyazaki entrelaça fragmentos de sua própria vida na trama, narrando a jornada de Mahito com sensibilidade. A perda, as escolhas, o destino e a criação da vida são abordados de maneira honesta, desafiando as certezas previamente estabelecidas em animações anteriores.

Embora O Menino e a Garça possa parecer distante da excelência de outras fábulas do Ghibli, representa uma peça crucial no currículo do estúdio. A volta de Miyazaki, mantendo-se em ótima forma, reforça a maestria do diretor em criar experiências visuais deslumbrantes e intensas. Os primeiros minutos do filme, marcados pela beleza visual e intensidade dramática, ecoam a qualidade característica não apenas de Miyazaki, mas do Studio Ghibli como um todo. A perspectiva infantil da Segunda Guerra Mundial evoca memórias do surpreendente e dramático Túmulo dos Vagalumes, de 1988 (meu amigo, se você não viu esse filme eu aconselho que você procure assisti-lo o quanto antes, pois está perdendo um drama de primeira categoria em formato de animação!), ressaltando a habilidade do estúdio em abordar temas sensíveis com profundidade.

A narrativa meticulosa de Miyazaki, desde os momentos visualmente deslumbrantes até as sutilezas do dia a dia, prévias à perda, destaca a atenção aos detalhes que tornam suas obras tão impactantes. O Menino e a Garça não apenas é uma ode à imaginação, mas também um mergulho reflexivo na complexidade da vida, costurando as camadas da realidade e da fantasia de forma única e envolvente. Em seu retorno, Miyazaki prova mais uma vez ser um mestre na arte de contar histórias, cativando audiências e deixando uma marca indelével no cenário cinematográfico mundial.

Por que ver esse filme? O simples fato de ser uma obra do Studio Ghibli já justifica o esforço para contemplá-lo no cinema, entretanto o fato de ser uma obra do mestre Hayao Miyazaki acrescenta um elemento de peso a essa obra. Os fãs de anime possuem, no mínimo, a obrigação de assisti-lo, mas o público em geral também irá se deleitar com uma obra que é pura arte. O Menino e a Garça é um testemunho claro de que a animação japonesa, em seu tradicional 2D, está muito além dos tradicionais estúdios de animação do Ocidente que se perderam em meio a uma busca comercial que visa lucro e não a arte. Essa é uma obra que transcende as expectativas, oferecendo uma experiência única no atual cenário cinematográfico.

Odailson Volpe de Abreu


Anuncie com Jornal Noroeste
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