Kafka nos avisa há cem anos

Há histórias que não se explicam, apenas se sentem. A Metamorfose, de Franz Kafka, é uma delas.
Logo nas primeiras linhas, o leitor é lançado ao absurdo: Gregor Samsa, um homem comum, trabalhador, sustentáculo da família, desperta transformado em um inseto gigantesco. Não há introdução, nem aviso, nem mistério a resolver. A transformação já aconteceu. E é justamente aí que mora a genialidade de Kafka: ele não escreve para contar o que muda, mas para mostrar o que permanece igual. O mundo continua, implacável, indiferente.
Kafka não nos entrega uma narrativa fantástica, mas um retrato da solidão humana. Gregor, que antes era o provedor da casa, o filho exemplar, o homem útil, agora se torna peso, incômodo, vergonha. A metamorfose revela algo que sempre esteve ali: o amor condicionado à utilidade.
É fácil gostar de alguém enquanto ele serve a um propósito. Difícil é amá-lo quando deixa de entregar o que esperam.
O que faz A Metamorfose ser tão perturbadora é o modo como ela fala de nós sem dizer o nosso nome. Todos já fomos Gregor: quando não fomos ouvidos, quando fomos ignorados, quando percebemos que o mundo só tem paciência com quem funciona bem. Kafka, com sua linguagem seca e silenciosa, descreve o que acontece quando a alma começa a se deformar por dentro.
A leitura é incômoda, e precisa ser. Porque, em algum ponto, percebemos que Gregor não virou um inseto. Ele apenas se tornou visível em sua verdadeira forma: a de um ser humano exaurido por uma sociedade que mede valor pela produtividade.
A metamorfose, então, deixa de ser um evento físico e passa a ser uma metáfora da modernidade. Kafka antecipou o século das máquinas, dos escritórios, das repetições, da culpa de descansar. Um século em que o homem se transforma lentamente — e, pior, conscientemente — em algo que já não reconhece no espelho.
Ao final da leitura, não há consolo. Não há redenção. Mas há um alerta. O livro nos obriga a encarar uma pergunta que não envelhece: o que restará de nós quando deixarmos de ser úteis?
Kafka não nos responde. Apenas nos observa, como quem já viu de perto o processo. E talvez por isso A Metamorfose continue atual, mais de um século depois de publicada.
Porque, no fundo, a verdadeira metamorfose não é a de Gregor; é a nossa. A cada dia, nos transformamos um pouco mais. E, se não percebermos a tempo, quando formos enfim notados, talvez já não reste nada de humano em nós.

