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Grande Sertão


Por: Odailson Volpe de Abreu
Data: 13/06/2024
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O cinema brasileiro pode não ser o melhor do mundo, mas, ao longo das décadas, tem afirmado sua qualidade e criatividade de tempos em tempos e ganhado destaque, sempre surpreendendo com uma diversidade de temas e estilos que espelham nossa complexa realidade cultural, social e política. Desde os tempos pioneiros do Cinema Novo na década de 1960, quando cineastas ousados buscaram uma linguagem própria para retratar as injustiças sociais e a vida do povo brasileiro, até a enxurrada de filmes que conquistam o público com comédias, dramas e adaptações literárias, nosso cinema tem sido um verdadeiro reflexo da sociedade em constante transformação. Mesmo após o apagão sofrido na Cultura e, sobretudo no Cinema durante a última gestão federal (de 2018 a 2022), esse setor sobrevive e não só tem produzido filmes de grande sucesso e reconhecimento internacional, mas também sendo um pilar fundamental para a identidade cultural brasileira.

Entre os nomes de peso do cinema brasileiro contemporâneo, Guel Arraes se destaca como um dos diretores mais influentes e inovadores. Sua carreira brilhante é marcada pela habilidade em adaptar obras literárias e teatrais para o cinema e a televisão, mantendo a essência original e, ao mesmo tempo, criando novas formas de expressão cinematográfica. Com seu talento em misturar humor, drama e crítica social, Arraes trouxe uma nova perspectiva para as produções audiovisuais brasileiras, ajudando essas obras a alcançarem um público mais amplo e diversificado. Filmes como O Auto da Compadecida e Lisbela e o Prisioneiro exemplificam sua habilidade única de contar histórias brasileiras com um toque universal, ressoando tanto no próprio país quanto no exterior.

As contribuições de Guel Arraes para o cinema brasileiro vão muito além da direção e da adaptação de obras literárias. Ele tem sido uma força motriz na revitalização do cinema nacional, trabalhando incansavelmente para elevar a qualidade e o prestígio das produções brasileiras. Seu trabalho ajudou a romper barreiras e preconceitos, mostrando que o cinema brasileiro pode ser simultaneamente popular e profundo, acessível e sofisticado. Arraes tem um dom especial para criar personagens e narrativas que são profundamente brasileiras, mas que também possuem um apelo universal, permitindo que suas histórias transcendam fronteiras culturais e geográficas. Sua contribuição para o cinema brasileiro é inestimável, estabelecendo um padrão de excelência e criatividade que continua a inspirar novas gerações de cineastas.

Para alegria dos fãs do cinema nacional, esse ano haverá Guel Arraes em dose dupla no cinema. Isso porque no final do ano o esperado Auto da Compadecida 2 chegará às telonas e agora, acabou de estrear seu mais novo filme, Grande Sertão, uma obra magistral que chama a atenção logo de cara. Trata-se de uma adaptação do livro “Grande Sertão Veredas, de Guimarães Rosa, publicado em 1956, uma das maiores obras literárias brasileiras.

Dito isso, é preciso considerar as liberdades do diretor em sua adaptação do livro para a linguagem cinematográfica. Por exemplo, a escolha de Arraes de situar a narrativa em uma comunidade periférica cercada por um muro imponente, batizada de Grande Sertão, é um dos aspectos mais intrigantes desta adaptação. Isso porque quem conhece o livro, sabe que a trama se passa em outro contexto geográfico, no caso, o norte de Minas Gerais e nas regiões áridas da Bahia e Goiás. Ao transpor o sertão para um ambiente urbano futurista, o filme estabelece um paralelo potente entre as guerras do sertão e as guerras urbanas, destacando a violência e as complexas relações humanas que permeiam ambas as realidades. Uma maneira inteligente de atualizar a história já tão conhecida e torna-la mais palatável para o gosto das novas gerações. A meu ver, essa transposição é um dos grandes trunfos do roteiro, co-escrito por Arraes e Jorge Furtado, principalmente porque consegue manter a essência poética e filosófica da obra original, ao mesmo tempo em que a atualiza para dialogar com questões sociais e políticas do Brasil contemporâneo.

Sobre o elenco, tem destaque o talentoso e conhecido ator Caio Blat, que brilha no papel de Riobaldo, um professor de história que, em sua relação complexa e afetuosa com Diadorim (interpretada por Luísa Arraes, que é filha do diretor), se vê envolvido em uma violenta guerra entre bandidos e a polícia. A atuação de Blat é poderosa e multifacetada, capturando a evolução de Riobaldo de um professor pacato para um guerreiro engajado na luta por justiça. A química entre Blat e Luísa Arraes é palpável, especialmente em cenas de grande carga emocional, como os momentos de intimidade e confronto.

Visualmente, Grande Sertão é um espetáculo. Ele fará o público recordar de outras grandes obras que inauguraram um subgênero muito específico e reconhecido no Brasil e no exterior durante a década de 2000 e que estava bastante esquecido ultimamente, o filme urbano de favela. Fazem parte dessa classe de filmes a que me refiro os aclamados Cidade de Deus, de 2002, e Tropa de Elite, de 2007. A respeito do aspecto técnico, a direção de arte e a fotografia criam uma ambientação urbana em ruínas que é, ao mesmo tempo, desoladora e deslumbrante. As cenas são ricas em detalhes, desde o lixo nas ruas até os plásticos ao vento, compondo um cenário que ressoa com a realidade das periferias brasileiras. A estética visual do filme não apenas complementa a narrativa, mas também a eleva, oferecendo ao espectador uma imersão completa no mundo distópico criado por Arraes. O que leva indiretamente o expectador a se questionar se, ao final das contas, toda periferia do mundo real não seria na verdade um espaço distópico devido as dificuldades e aos desafios com os quais seus moradores são obrigados a conviverem todos os dias.

Partindo dessa premissa, vale a pena ressaltar que Grande Sertão acaba entregando mais do que apenas uma adaptação cinematográfica. Isso porque se encaixa naquele tipo de filme que leva a questionamentos profundos sobre a sociedade brasileira atual. Os paralelos entre as lutas do sertão e os conflitos urbanos são explorados de forma intensa, revelando as continuidades da violência, da repressão e da luta de classes. As aulas de Riobaldo, que ensina sobre as guerras e conflitos do Brasil, servem como uma metanarrativa que ecoa a repetição histórica das dinâmicas de poder e resistência.

Apesar de suas inúmeras qualidades, Grande Sertão, como a maioria dos filmes, também tem seus problemas. Há quem critique a linguagem teatral e a estética não-realista, pois elas podem alienar espectadores que preferem um estilo mais convencional de narrativa cinematográfica. Outro ponto que é passível de crítica e que pode desagradar a uns e outros foi a escolha por manter a prosa rica e quase rimada de Guimarães Rosa ao longo da trama. Algo que pode parecer excessivo em alguns momentos, principalmente para as pessoas não familiarizados com o texto original (algo que, infelizmente, na atualidade, acaba sendo muito comum). No entanto, é justamente essa ousadia estilística que diferencia o filme e lhe confere uma identidade própria. Guel Arraes prova mais uma vez ser um mestre em adaptar a literatura brasileira para a tela grande, oferecendo uma visão única que respeita e homenageia o espírito da obra original enquanto a reinventa para novos públicos. Grande Sertão é um grande filme, que combina arte e cinema de forma sublime, e que certamente encontrará seu lugar como uma das grandes adaptações literárias do cinema brasileiro.

Por que ver esse filme? Grande Sertão é um longa que desafia e recompensa seu público. É uma obra que exige uma abertura para a linguagem poética e uma apreciação pelas complexidades das adaptações literárias. Pode não ser um filme para muitos, mas com certeza é um filme para todos e por isso precisa ser visto. Para aqueles dispostos a embarcar nessa jornada, o filme oferece uma experiência rica em significado, reflexão e beleza. Boa sessão!

Odailson Volpe de Abreu


Anuncie com Jornal Noroeste
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