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Eu vim da Bahia mas algum dia eu volto pra lá (parte II)


Por: Josimar Priori
Data: 09/04/2024
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“Uma Igreja De Ouro”: Convento e Igreja De São Francisco De Assis

Localizada no Pelourinho, centro histórico de Salvador, patrimônio histórico da humanidade, a história da “igreja de ouro” remonta ao século XVII. Pertencente a Ordem Terceira de São Francisco, que possuía um convento no mesmo local, a igreja é tombada pelo Instituto do Património Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e classificada como uma das Sete Maravilhas de Origem Portuguesa no Mundo, assim como é todo o Pelourinho.

(Fotos: Josimar PrioriPlaca na entrada do Convento e Igreja de São Francisco

Para entrar na igreja, cada visitante deve pagar uma quantia de R$ 10,00. Chegamos à igreja no sábado, 06 de janeiro de 2024, por volta das 16 horas. Não havia uma multidão, mas tinha uma quantidade significativa de pessoas e o todo tempo havia gente chegando e saindo. Chequei a inquirir um dos funcionários do local sobre como era aplicado o valor arrecado com as visitas. De acordo com ele, até hoje a construção é administrada pelos franciscanos. Moram 12 freis no convento ali existente. Já idosos, parte considerável do montante arrecadado seria utilizado para custear as despesas com saúde e alimentação deles. De acordo com ele, o restante vai para a manutenção do local. Segundo este funcionário, os valores gastos são muito grandes. Eu insisti na hipótese de que deveria sobrar dinheiro, dada a quantidade de pessoas que passam por ali todos os dias. Ele me garantiu que não e que a manutenção do templo e dos freis consome todo o recurso.

Interior da Igreja de São Francisco

É possível caminhar pelo adro, visitar salas adjacentes e adentrar no imponente templo de estilo barroco. O impacto da decoração extremamente ampla, com profusão de detalhes, já seria imenso mesmo que não fosse tudo coberto com o ouro. Os diversos relatos que ouvimos in loco e também em sites de informação declaram terem sido gastos aproximadamente uma tonelada deste cobiçado metal na construção. A experiência visual é realmente intensa. Causa perplexidade. Tudo fica ainda mais forte quando se pensa que tudo isso foi construído por mãos humanas. A capacidade dessa espécie e as maneiras mais contraditórias usadas para executá-la são incríveis e ver até que níveis ela pode chegar é algo que nos mobiliza, extasia e devasta.

Voltarei a este ponto. Antes, porém, quero fazer um breve relato sobre o tipo de visitação que percebi as pessoas fazendo no local. Fotos, muitas fotos, sorrisos, brincadeiras, admiração com aquela maravilha tida como de origem portuguesa. Os guias turísticos acompanham os grupos explicando significados. Uma delas salienta que não é uma igreja de ouro, mas revestida pelo cobiçado metal. Outro explica a quantidade de altares do templo e o significado das imagens em cada um deles. As pessoas circulam pelo local. Celulares em punho, registros garantidos. Uma guia turística faz fotos de um casal dando um beijinho.

Minha esposa e eu somos capturados para uma foto também. Insistem que nos beijemos. Eu me recuso. Insistem e eu também. Alego estar numa igreja que inspira respeito. A réplica que recebo é que seria a oportunidade de renovar os votos de casamento. O verdadeiro motivo da minha recusa, porém, não foi este. Muito me incomoda a maneira como a igreja é a apresentada, representada, apropriada, ocupada e experenciada pelos turistas. Faz parte deste incômodo não apenas o comportamento deles, mas o fato de que este atitude é pré-determinada pelo tipo de visita que é oferecida aos viajantes. Trata-se, a meu ver, de uma situação na qual se naturaliza e se transforma em um ícone acrítico e vazio de significado reflexivo um local de profunda contradição histórica do país.

Sabemos que o templo foi construído no período colonial. O regime escravocrata fornecia a mão de obra e as condições materiais de produção daquele mundo. No entanto, nenhuma referência foi vista por mim sobre quem, de fato, ergueu cada tijolo daquela igreja. Como pergunta Bertolt Brecht (Alemanha, 1898 – 1956) no poema Perguntas de um trabalhador que lê:

Quem construiu Tebas, a cidade das sete portas?

Nos livros estão nomes de reis;

Os reis carregaram as pedras?

 [...]

A grande Roma está cheia de arcos-do-triunfo:

Quem os erigiu? Quem eram aqueles que foram vencidos pelos césares?

[...]

O jovem Alexandre conquistou a Índia.

Sozinho?

César ocupou a Gália.

Não estava com ele nem mesmo um cozinheiro?

[...]

A cada dez anos um grande homem.

Quem pagava as despesas?

Tantas histórias,

Tantas questões

Inspirado em Brecht, perguntava-me: quais foram os operários desta maravilha? Ela é mesma de origem portuguesa? Quem ergueu cada tijolo? Quais eram as condições de trabalho? Qual a premiação para os trabalhadores? Quem minerava e transportava as pedras, os metais, o ouro? Alguém caiu dos andaimes? Por que esta obra é representada como uma maravilha portuguesa se os trabalhadores eram africanos? Muito se fala, e com razão, sobre o holocausto nazista, mas a narrativa dominante apaga o fato de que passamos por experiência semelhante em relação aos povos indígenas nativos do Brasil e aos povos africanos capturados, acorrentados e submetidos ao regime da escravidão nestas terras coloniais. É difícil identificar outras práticas que sejam tão violentas quanto a escravidão, especialmente se a considerarmos em seu conjunto, envolvendo todas as formas de tortura, fome, desnutrição, além da privação do escravizado do contato com sua família, filhos, pais, irmãos, língua, cultura e religião.

Sempre que estou em locais como este, vem-me à mente, além do poema de Brecht, a frase de Walter Benjamin (Alemanha, 1892-1940): “nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie, não o é, tampouco, o processo de transmissão da cultura”. De fato, aquele monumento incrível, essa verdadeira obra humana, produto da cultura, não foi isenta de barbárie. A narrativa sobre ela, porém, oculta tanto quanto pode a barbárie subjacente. Recebe tratamento de paisagem trivial o fato de que foram escravos que construíram a igreja. Não se menciona que eram pessoas, seres humanos capturados da África, trazidos à força para o Brasil em imundos navios, que muitos morriam nesse trajeto. Aqui chegados passavam a ser tratados como animais de tração e reduzidos à força motriz. Foram eles que ergueram cada tijolo, que executaram a obra.

Pasmem: os negros, porém, não podiam, depois de pronta, frequentarem a igreja que construíram. Pasmem ii: esta é uma igreja dedicada a São Francisco de Assis. A marca histórica deste santo é o ato de se despojar de toda riqueza, abrir mão de sua herança familiar e viver uma vida de radical pobreza, buscando ampliar o máximo possível a sua mensagem de combate à opulência da Igreja Católica medieval. O santo dos pobres é homenageado numa igreja absurdamente rica e erguida da forma mais cruel possível.

A sequência da frase benjaminiana supracitada é a seguinte: “Por isso, na medida do possível, o materialista histórico se desvia dela [da barbárie contida no processo de transmissão da cultura]. Considera sua tarefa escovar a história a contrapelo” (BENJAMIN, 1987, p. 225). No caso desta igreja, quando se observa na direção contrária ao pelo o que poderia emergir? O que aconteceria, por exemplo, se o turista que entrasse nessa igreja fosse não compelido a fazer fotinhas de beijinhos para as redes sociais, mas tivesse que ser submetido a uma profunda e dolorosa experimentação do que foi o regime da escravidão? Se este turista entrasse, por exemplo, em uma câmara em que ele observasse, ouvisse, visse e sentisse como era o processo de tortura de um escravizado realizado no pelourinho? Qual seria a experiência da aterradora cena do estupro de uma mulher escrava? Como seria saber que essa mulher ficaria grávida e depois o filho seria vendido para outro senhor de escravos? Ou então ouvir crianças estourando no ventre de suas mães grávidas atiradas em fogueiras, como conta Gilberto Freyre na obra Casa-Grande & Senzala? Com que consciência este turista sairia se aqui ocorresse algo parecido com o que costuma ser feito nos museus do holocausto nazista? Quais forças sociais e políticas impedem que esta igreja seja escovada a contrapelo? Talvez esteja sintetizada aí uma das principais contradições que insistem em resistir no coração do Brasil colonial.

Os explorados e oprimidos do regime colonial, porém, não se submetiam passiva e mansamente ao massacre que sofriam. Foram muitas e diversificadas as formas de resistência. Nem sempre ela ocorria na forma de uma revolta frontal, mas de lentos processos de reapropriação, ressignificação e recriação de modos de sobrevivência física e cultural. O sincretismo religioso e o que é chamado de cultura baiana me parecem evidentes resultados disso.

Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos de São Benedito

Um resultado mais imediato de resistência, mas também de expressão da desigualdade diante fé, é a construção de uma igreja para os pretos, livres ou escravizados. Enquanto a igreja principal, banhada a ouro, era frequentada pela aristocracia colonial, restou aos povos de origem africana construírem a sua própria igreja. Nomeada de Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos de São Benedito, essa igreja, de acordo com os relatos que ouvimos, levou mais de cem anos para ficar pronta. Os escravos eram liberados à noite para fazerem a construção, mas como não havia iluminação elétrica, precisavam da luz natural da lua cheia para trabalharem, o que lhes condicionou a laborarem apenas uma semana em cada ciclo lunar.

Interior da Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos 
Quadro de etapa da via sacra com Jesus Cristo preto 
Presépio com menino Jesus preto 

A observação deste templo é bem interessante. A representatividade hoje tão exaltada já era buscada naquele período. O presépio, por exemplo, ao contrário do que está na igreja de São Francisco, possui um menino Jesus preto. As placas com as etapas da via sacra igualmente possuem imagens de Cristo na cor preta. Os santos que adornam os altares são quase todos negros. São Benedito, Santa Efigênia e Santa Bárbara estão entre os destaques.

Na entrada da igreja há placa com algumas informações sobre a criação do templo: “foi fundada em 1685, por uma das primeiras irmandades de homens pretos do Brasil. A atual igreja do pelourinho começou a ser construída em 1704, pelos próprios irmãos negros, incluindo escravos. Essa igreja, a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, é um testemunho eloquente da comunhão fraterna entre culturas e modos diversos de crer em Deus. Uma excelente oportunidade para rezar pela unidade de todos os homens e mulheres do mundo”.

Causou-me estranheza e inquietação a expressão “comunhão fraterna entre culturas e modos diversos de crer em Deus”. Analisando a contrapelo, é possível observar que as coisas não se deram de forma harmônica como a frase sugere. Como já dito, a escravidão, a proibição dos idiomas e das religiões dos indígenas e negros, torturas e outras tantas formas de opressão não são compatíveis com uma convivência harmônica. O próprio fato aqui apresentado, isto é, a imposição de uma religiosidade europeia, mas impedida de ser praticada no mesmo espaço, coloca um ponto de interrogação nesta suposta “comunhão fraterna”.  

Inicia-se aí, porém, um processo de resistência que se dá pela ressignificação dos símbolos católicos e pelo sincretismo religioso. Com a proibição dos cultos africanos, as figuras religiosas do cristianismo vão progressivamente sendo associadas a entidades sagradas da África. Assim, apesar do esforço de apagamento de tudo que era oriundo desse continente, esse projeto jamais foi possível de ser concretizado. O próprio panteão católico se torna um lócus de apropriação pelos africanos como forma de praticar a sua fé e sua cultura. Além disso, os pretos passam a se apropriar de referencias cristãs que lhes dão esperança e força para passarem pelo martírio da escravidão. Pode ser inserida nessa chave não apenas o escurecimento do próprio cristo, mas também a predileção por santos de pele escura e a devoção a santos cuja história foi marcada pelo sofrimento, pela tortura e pelo martírio.

Quadro descreve aproximação entre negros e santos de pele preta

Durante a interação com moradores perguntei algumas vezes como ocorre atualmente o relacionamento entre católicos, evangélicos e praticantes de religiões africanas como umbanda e candomblé. O que me foi passado é que há atritos, mas que eles são pontuais. De modo geral, haveria, segundo os relatos, uma convivência relativamente tranquila entre as diferentes matrizes religiosas. De fato, a nossa experiência não sugere nada contrário disso no atual momento, como irei demonstrar a seguir ao tratar sobre a festa da Lavagem do Bonfim. Ainda assim, sabemos que o passado esconde profundas violências, das quais a segregação entre brancos e pretos na prática do próprio catolicismo colonial é um exemplo eloquente. Ou seja, ainda que exista alguma harmonia, é difícil crer que mesmo hoje ela seja igualitária e no passado certamente não foi.

Josimar Priori


Anuncie com Jornal Noroeste
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