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Era Uma Vez Um Sonho


Por: Odailson Volpe de Abreu
Data: 03/12/2020
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Com o aumento do número de infectados por COVID-19, cada vez mais, uma escapadela ao cinema se torna inviável. Por isso, o jeito é aproveitar a boa safra que os streamings estão entregando semanalmente. Dentre eles, a Netflix, o mais popular desse tipo de serviço, tem diversificado suas estreias, batendo de frente com a concorrência. Já tem algumas semanas que essa plataforma resolveu mirar no Oscar 2021, lançando alguns filmes com qualidade e elenco de encher os olhos. Na última semana, chegou mais um dessa leva, Era Uma Vez Um Sonho. Um dramalhão de primeira, baseado em fatos, com um elenco de estrelas e com aspiração a indicações ao Oscar. Sobre essa grande estreia você fica muito bem informado na Coluna Sétima Arte.

Não faz muito tempo a Netflix trouxe um drama brutal e sanguinário que utilizava como pano de fundo o interior mais profundo dos Estados Unidos da América, eu estou falando sobre O Diabo de Cada Dia, que comentei aqui há algumas semanas. Agora, trilhando um caminho oposto ao desastre preanunciado de O Diabo de Cada Dia, mas ambientado no mesmo interior controverso e marginal dos Estados Unidos da América, chega às telas Era Uma Vez Um Sonho.

A trama é baseada no livro de memórias de J.D. Vance, lançado em 2016, e que aborda de maneira particular essa parcela de pessoas brancas, pobres, muitas vezes ignorantes, e, acima de tudo, conservadoras dos Estados Unidos da América. Aquele tipo de gente, muito retratada nos desenhos animados e que empunha uma espingarda ao menor sinal de barulho. Ambos são muito bem representados nas duas obras citadas, mas no filme que acabou de estrear, esses típicos “caipiras” (eu não gosto desse termo, pois o considero altamente pejorativo, mas está presente no título original, “Hillbilly Elegy”, por isso tomei a liberdade de utilizá-lo aqui) trazem à tona muito mais do que essa propensão à violência, evidenciando vidas, lutas e superação. O livro foi um sucesso em seu lançamento e exibe tanto as qualidades, quanto as imperfeições (que não são poucas) das pessoas que são frutos dessa sociedade interiorana.

A trama é bem típica daquelas que recebem muitas indicações ao Oscar: uma história de superação, dramas familiares obscuros, um ambiente altamente tóxico. Tinha tudo para dar certo, caso o roteiro não tivesse sido feito por Vanessa Taylor. Como roteirista, Taylor tem seu valor, afinal foi ela que escreveu o roteiro de A Forma da Água, grande campeão do Oscar de 2018. Mas em A Forma da Água ela estava trabalhando com uma obra de fantasia, diferente do filme em questão que, por ser uma história real, exigiu muito mais complexidade do que ela conseguiu impor ao roteiro. Era preciso criar subtramas e desenvolver personagens para que as ações e acontecimentos fossem, no mínimo, justificáveis. Como isso não acontece, a sensação de lacuna, mesmo diante das quase duas horas de filme, paira constantemente no ar.

É claro que isso não vai estragar a sua diversão e nem mesmo fazer com que você se conecte menos com a história, pois, de uma forma ou de outra, isso acaba acontecendo. Mas as tão sonhadas indicações ao maior prêmio de Hollywood, talvez, fiquem apenas no sonho. Por outro lado, muita gente se identifica hora ou outra com o personagem principal, seja por conta da sua história familiar, seja por conta da sua fuga nas drogas e no vandalismo, ou mesmo por causa da maneira como ele redireciona seu caminho, abandonando o passado que o puxa para baixo e se tornando livre para superar amarras que a família, a falta de cultura e a pobreza lhe impõem.

A direção ficou a cargo de um profissional que é especialista em cinebiografias, Ron Howard. Ele dirigiu Apollo 13, Uma Mente Brilhante e outras obras com essa mesma pegada. Se sua última promessa amargou uma terrível derrota Han Solo foi malhado pela crítica e pelo público —, isso não se deve apenas à sua incapacidade, mas ao roteiro que não era consistente, algo muito parecido com o que acontece com Era Uma Vez Um Sonho.  Digo isso porque mesmo que ele seja expert em cinebiografias, é impossível que o trabalho de direção supere as falhas do roteiro. E olha que ele tenta fazer isso, muitas vezes!

O roteiro prioriza a simplificação das relações, oferecendo ao público muito pouco sobre o passado ou os dramas pregressos, subutilizando personagens centrais e suprimindo acontecimentos importantes da própria vida do protagonista. Sobre isso, trago dois exemplos. O primeiro é a falta de exposição do esforço e do crescimento intelectual do protagonista, dando a impressão falha de que bastou investir numa calculadora para que ele fosse um sucesso acadêmico. Já o segundo, são as motivações que faltam ao longo da trama, os avós engravidaram na adolescência e fugiram do interior, por que? A filha deles, mãe do protagonista, sofre as mazelas causadas por essa decisão ao longo de sua vida adulta, por que? Questões que perpassam três gerações, as quais o filme insinua respostsa, mas que não ficam claras para o expectador.

Além da direção, o elenco também tenta superar as falhas do roteiro e as estrelas maiores brilham sempre quando estão em cena. Glenn Close e Amy Adams, duas injustiçadas do Oscar, colocam em personagens densos, mesmo que pouco desenvolvidos, todo talento possível, despertando inúmeras emoções no público ao longo do filme. O exímio trabalho de maquiagem faz com que elas fiquem quase irreconhecíveis com seus cabelos despenteados e roupas vulgares, mas o talento é perceptível a olho nu. Já o protagonista, tanto em sua versão adolescente, quanto sua versão adulta, interpretadas respectivamente por Owen Asztalos e Gabriel Basso, é bastante insosso. De maneira que sua atuação não agrada em nada, mas atende à necessidade. Eu me atrevo a dizer que o papel do caipira tentando a todo custo vencer na vida transcende a falta e carisma de Gabriel Basso. Vamos à trama!

Em Era Uma Vez um Sonho, a família Vance se muda para Ohio na esperança de viver longe da pobreza em um período pós-guerra. Quando o membro mais jovem da família cresce e se torna um estudante de direito na universidade de Yale, ele é obrigado a retornar à sua cidade natal, confrontando seu passado com o tão famoso sonho americano. Porém, ao perceber a luta de sua família contra o racismo, abusos, alcoolismo e pobreza, o jovem logo descobre que esse estereótipo americano é superficial e está longe de parecer um sonho.

Por que ver esse filme? Porque tecnicamente ele agrada de várias formas, mesmo tendo um roteiro falho, são ângulos, nuances, efeitos que valem a pena. Porque as atuações de Glenn Close e Amy Adams são excelentes. Por fim, porque como drama ele fala direto ao coração e à psique humana, fugindo dos clichês do gênero e desconstruindo o sonho americano. A origem da trama, o livro escrito pelo próprio Vance, já é a melhor justificativa para assistir a Era Uma Vez Um Sonho. Boa sessão!

 Por Odailson Volpe de Abreu

Odailson Volpe de Abreu


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