“Entre a água e a selva”, de Albert Schweitzer
Um livro que me marcou é o que será objeto desta resenha, a ponto de eu o ter lido duas vezes num curto espaço de tempo. E por que ele me deixou uma impressão tão forte? Porque eu vi um pensador poderoso que uniu a teoria com a prática. A teoria? Ele era teólogo, músico, filósofo e médico. a prática? Colocou todo o seu conhecimento à disposição de Lambaréné, no Gabão, atuando como médico entre a água e a selva.
Segundo o próprio Schweitzer, o que ele deixou na Europa? “Deixei a docência na Universidade de Estrasburgo, a arte de tocar órgãos e uma carreira de escritor para atuar como médico na África equatorial.” (SCHWEITZER, 2010, p. 11). Todavia, desde já, que ninguém se engane: ele jamais deixou de se dedicar à música e à escrita, só não o fazendo de forma exclusiva ou como primeira atividade. A vocação do pensador o inclinou a tal ponto que os seus gostos mais intelectuais foram recuados. Na verdade, o termo correto não seria nem “recuado”, mas postos a servir à sua missão, que era a de cuidar do sofrimento humano, no caso, dos nativos do Gabão.
É interessante acompanhar o percurso do escritor Albert Schweitzer, apesar dele dizer que deixou a vida de escritor na Europa, pois é possível acompanhar uma escrita intimamente relacionada à vida, uma escrita na vida. E como ele passou a escrever? Muitas vezes, depois de um dia exaustivo, que se fazia entre consultas, cirurgias e trabalhos braçais. Era comum o médico ser interrompido enquanto estudava, chegando-lhe doentes, ou aparecendo todo tipo de atividades, como construções, arrumações no hospital, atuar como vigia de trabalhos, etc. Schweitzer chega a ficar “zonzo” por causa da alta demanda que lhe recaía.
Acabava eu de escrever o trecho acima, nesta tarde de 10 de janeiro, quando tive de ir às pressas ao cais. A senhora Georges Faure, missionária em N’Gômô, gravemente acometida pela malária, chegava numa lancha a motor. Mal terminava a minha primeira injeção de quinina, eis que uma canoa me trazia um rapaz cuja perna direita havia sido fraturada e horrivelmente dilacerada por um hipopótamo, no lago de Sonanguê. (SCHWEITZER, 2010, p. 63).
Como uma enfermaria só não basta para albergar os meus doentes, preciso quanto antes construir outras cabanas. Necessito também de local para isolar doentes contagiosos, principalmente os disentéricos. Portanto, além da clínica, não me faltam outras tarefas. (SCHWEITZER, 2010, p. 68).
Dois doentes queixosos de febre ou dores de cabeça me reteriam diante do microscópio durante toda uma manhã se eu quiser efetuar minuciosamente as minhas investigações. Mas lá fora esperam vinte doentes que precisam ser atendidos antes do meio-dia! e preciso fazer curativo nos operados, destilar água, preparar medicamentos, tratar úlceras, extrair dentes! Essas alternativas e a impaciência dos doentes me enervam muitas vezes a tal ponto que fico zonzo. (SCHWEITZER, 2010, p. 90).
Schweitzer teve, quando estudava e lecionava em Estrasburgo, contato íntimo com a intelectualidade europeia, sendo que mesmo após iniciar sua missão em África ainda dialogava com os intelectuais. Porém, é preciso imaginar que quem sai do conforto da Europa e vai para a selva do Gabão, no início do século XX, perde também parte desses diálogos. Não há que se comparar o contato diário com escritores que tinha um Hemingway na década de 1920 em Paris, com o que estabelecia Schweitzer entre a água e a selva. É por isso que o alemão dizia que a carreira de escritor ele tinha abandonado.
A questão é que cada pessoa deve viver a sua vida em busca de sua vocação. E por que isso para que a vida tenha mais sentido. Hemingway, apesar de passar fome em Paris, não reclamava, ou se censurava quando reclamava, pois ele tinha escolhido ser escritor em Paris, e para isso viriam percalços. Schweitzer é semelhante: para atingir o seu objetivo não rato teria dificuldades no Gabão, como em relação à sua saúde, tendo ele e a esposa problemas nos dentes e anemia. Apesar dessas dificuldades, o médico agradecia a vida que levava e a oportunidade de curar e de diminuir o sofrimento alheio.
O livro “Entre a água e a selva” foi escrito em parte como divulgação do trabalho já realizado, em parte para o próprio médico consolidar suas impressões missionárias. É por isso que se vê, ao mesmo tempo, apelos aos amigos europeus para que continuem contribuindo com a sua obra médica, e impressões sobre hábitos dos nativos. No transcorrer do livro, o leitor aprende, simultaneamente, como é o trabalho de um médico que dispõe de poucos recursos, como o tanto que de pouco muito pode ser feito. Isso leva a uma apologia à miséria? Não, em momento algum Schweitzer leva a essa conclusão, mas que ninguém deve dizer que é impotente, incapaz de se colocar em ação.
Já foi dito que a rotina do médico era extensa e intensa, o que, todavia, não lhe diminuía o “vigor intelectual”, o que o espantava. Nas palavras do filósofo:
Eis um fato que me espanta: apesar do cansaço e da anemia, conservo quase intato o meu vigor intelectual. Se o dia não foi muito trabalhoso, posso ainda, depois da última refeição, trabalhar durante uma ou duas horas na minha obra sobre a noção de civilização e a ideia fundamental da ética na história do pensamento humano. Os livros que necessitava para esse trabalho e que não possuía me foram enviados pelo senhor Strohl, professor de Zoologia na Universidade de Zurique. Minha mesa está colocada rente à porta que abre para a varanda e que, em lugar de vidro, tem uma fina rede metálica, de modo que posso respirar ao máximo a brisa ligeira da noite. As palmeiras acompanham com seu leve sussurro suave a música aguda dos grilos e sapos. Gritos horrendos e inquietantes chegam a mim, vindos da floresta. Caramba, meu cão fiel, grunhe baixinho para me lembrar de sua presença. Um pequeno antílope fêmea anã está estendida a meus pés, debaixo da mesa. nesta solidão, procuro formular os pensamentos que me preocupam desde 1900 e que contribuirão para a reconstrução da civilização. Oh, solidão da selva, como poderei agradecer-te bastante o bem que me fazes!... (SCHWEITZER, 2010, p. 151-152).
E o que seria esse “vigor”? A capacidade reflexiva para se colocar além o “aqui agora”. Schweitzer afirma no livro que ter gosto intelectual é fundamental para quem vive na África, para o missionário em geral, pois isso não o deixa cair em fatalismos e lhe cria uma postura de pensamento rigorosa. Se alguém diz “isso não é possível”, a pessoa dada às reflexões, não dará isso como algo dado e acabado. Em Schweitzer, o intelecto leva à esperança, e isso será importante para não perder a fé na humanidade, ainda mais quando se tem em vista que “Entre a água e a selva” foi escrito no contexto da 1ª Guerra Mundial.
Schweitzer será, ao mesmo tempo, um intelectual, um músico, um médico e um promotor da paz. A sua ideia de “confraria da dor” é valiosa. Alguns poderão chamá-lo de utópico, mas, que assim seja. E o que seria essa “confraria”? Toda pessoa que um dia sentiu dor, que padeceu males físicos e espirituais, deve se unir à outra que também sentiu, de modo que seja criada uma confraria de pessoas preocupadas com o bem, com a vida. é esse o motivo da esperança de Schweitzer, apesar de toda a sua desconfiança com a civilização, como se demonstra em suas críticas à guerra e em seu livro “Filosofia da Civilização”.
Todos quantos conheceram a angústia e a dor física estão unidos no mundo inteiro por um laço misterioso. Cada um deles conhece as leis inexoráveis a que o homem pode estar submetido e a aspiração que tem de se ver livre das dores. Mas quem se sente libertado delas não deve pensar que está livre de todo e que pode reentrar na vida comum como se nada houvesse acontecido. Travou conhecimento com o sofrimento e a angústia, e deve já agora ir ao encontro do sofrimento e da angústia e contribuir na medida em que a força humana possa agir para a salvação do próximo, já que ele próprio foi salvo. (SCHWEITZER, 2010, p. 176-177).
Sempre que eu leio Schweitzer, eu consigo sentir o poder de sua escrita como algo que me toca não só o intelecto, mas o corpo como um todo. Eu tenho vontade de agir, ainda que a minha ação possa ser ínfima e até vista como ridícula. O médico também recebeu todo tipo de reprimenda ao se colocar a caminho de sua obra. Apesar de todo estudo que possuía, Schweitzer não se deixou levar pelo sedutor discurso retórico do conhecimento pelo conhecimento, e é por isso que ele não pode ser lido jamais como um moralista, mas sim como um médico e artista.
Albert Schweitzer. Entre a água e a selva: narrativas e reflexões de um médico nas selvas da África equatorial. Trad. José Geraldo Vieira. São Paulo: Editora UNESP, 2010.
Dr. Felipe Figueira
Felipe Figueira é doutor em Educação e pós-doutor em História. Professor de História e Pedagogia no Instituto Federal do Paraná (IFPR) Campus Paranavaí.