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Emilia Pérez


Por: Odailson Volpe de Abreu
Data: 30/01/2025
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Após o grande momento de frisson e euforia vivido por boa parte dos brasileiros na última semana devido à tripla indicação de Ainda Estou Aqui para o Oscar 2025, é provável que você já esteja ciente de que o principal concorrente do nosso querido filme nacional é Emilia Pérez, que acabou de estrear. Contudo, é preciso deixar claro que é muito difícil manter imparcialidade ao comentar sobre o filme nessas circunstâncias, mas tentarei ser o mais neutro possível ao apresentar suas características importantes, bem como seus pontos positivos e negativos. Por outro lado, o público, especialmente o mexicano, não parece tão interessado em imparcialidade e tem feito críticas severas ao filme, gerando muita polêmica — algo que pode beneficiar bastante a campanha de Ainda Estou Aqui nas categorias em que concorre.

Caso você não esteja atento às redes sociais e ao mundo do entretenimento, Emilia Pérez tem sido malhado de forma contundente por muita gente por ser um filme francês, dirigido por Jacques Audiard, mas que foi rodado na Espanha e na França, apesar de sua trama envolver diretamente um cartel mexicano. Essa escolha proporcionou uma estética distinta, mas gerou críticas por não refletir a cultura mexicana. O elenco, que inclui Selena Gomez e Zoe Saldaña, enfrentou controvérsias sobre representatividade e autenticidade, especialmente devido à temática LGBTQIA+ e ao uso de um espanhol não nativo por parte dos atores, que poderiam ter sido escolhidos dentre as várias estrelas mexicanas. Audiard teve que se desculpar publicamente pelos deslizes da produção, que suscitaram debates sobre diversidade no cinema. Mesmo assim, Emilia Pérez recebeu 13 indicações ao Oscar desse ano.

Diante disso, persiste a pergunta: o que terá mais peso junto aos votantes do Oscar, a manutenção de uma agenda política à qual Emilia Pérez atende, alinhando-se às novas demandas de enfrentamento em tempos de Trump 2, ou priorizar a qualidade cinematográfica que tanto se espera? Dessa resposta depende o sucesso ou fracasso do Brasil no Oscar 2025!

Agora, sobre o filme em si, ele é uma obra que desafia as convenções do cinema moderno, especialmente no que tange ao gênero musical e à representação de identidades transgênero. O filme, que causou ótima impressão no Festival de Cannes 2024, onde foi premiado, apresenta-se como uma mistura audaciosa de thriller criminal e musical, com uma narrativa que se desenrola em torno da transformação de Juan Manitas Del Monte, interpretado por Karla Sofía Gascón, no personagem título.

Desde o início, Audiard estabelece um tom que é tanto surpreendente quanto desconcertante. A transição de Rita Mora Castro, vivida por Zoe Saldaña, de uma advogada subestimada a uma confidente e facilitadora da metamorfose de Manitas, é marcada por uma cena musical que captura a essência da frustração e do triunfo não reconhecido. Saldaña, que demonstra uma versatilidade impressionante, não apenas convence na atuação e no canto, mas também na dança, trazendo à tona seus múltiplos talentos, esquecidos por muitos, principalmente depois que a Marvel entrou na vida da atriz!

Audiard, conhecido por seus dramas sociais e épicos, como O Profeta, de 2009, e Ferrugem e Osso, de 2013, aqui se permite explorar um lado mais formalista e experimental. Nesse filme, as músicas são propositalmente diferentes daqueles momentos de cantoria que parecem naturais em outros filmes e fazem sentido dentro da história. Por exemplo, esse não é aquele musical onde todo mundo começa a cantar do nada de um jeito que parece meio estranho na vida real. Em Emilia Pérez as canções têm um papel especial e são usadas de um jeito mais fora da caixa. Ou seja, o diretor utiliza a música como um elemento narrativo intrínseco, que não apenas ilustra, mas impulsiona a história. A trilha sonora abrange uma gama de estilos contemporâneos, do rap ao pop experimental, integrando-se de forma natural e cativante à trama.

A ousadia do filme reside não só na sua estrutura narrativa, mas também na complexidade de sua protagonista. Gascón, como Manitas/Emilia Pérez, entrega uma performance corajosa e multifacetada. A decisão de retratar a jornada de transição de gênero de forma tão direta e sem os filtros esperados de sensibilidade contemporânea é um ponto alto da produção. A personagem carrega em si uma dualidade palpável: a figura imponente e masculina do chefão do tráfico que, ao se permitir viver como Emilia, revela camadas de vulnerabilidade e conflito interno. A atuação de Gascón é um testemunho da amplitude e do potencial disruptivo do cinema. Porém, vale lembrar que, se a atuação de Gascón é excepcional, o personagem em si não é. Pelo contrário, é controverso e até mesmo incoerente, pois na história a transição de gênero muda muito mais do que deveria, ao transformar um sanguinário chefe do narcotráfico numa pessoa caridosa, altruísta, empática e virtuosa. Algo um tanto quanto difícil de engolir.

Selena Gomez e Adriana Paz completam o elenco principal, cada uma trazendo nuances a seus papéis. Gomez, apesar de sua limitação no domínio do espanhol, enfrenta o desafio com naturalidade, enquanto Paz, introduzida mais tarde na narrativa, oferece uma profundidade emocional que enriquece o drama. Ambas as atrizes se destacam em um filme que, por vezes, parece mais preocupado em abraçar a vida em toda a sua complexidade do que em seguir uma estrutura narrativa convencional.

A estética de Emilia Pérez é igualmente ousada. Audiard opta por cenários de estúdio em Paris, evitando as locações mexicanas, o que por si só é um ponto negativo, mas que, por outro lado, acaba por contribuir para a sensação de irrealidade e fantasia que o filme busca. A direção de fotografia de Paul Guilhaume, com seu uso de maquiagem e iluminação, ajuda a criar essa dualidade visual que reflete a dualidade da personagem principal.

Contudo, se tecnicamente o filme traz muitos acertos, seus erros também são incômodos. O filme busca uma abordagem sobre identidade de gênero de um jeito novo, mas em algumas partes, parece um pouco dura e velha, quase usando ideias batidas que poderiam ter sido exploradas de maneira mais delicada. Além disso, a história tem uma vibe religiosa que pode não combinar muito com o que as pessoas pensam hoje em dia, principalmente quando mistura essas ideias com a vida de personagens LGBTQIA+. Além disso, a exposição bruta e quase clínica das transformações pessoais e sociais faz com que Emilia Pérez pareça um filme deslocado do seu tempo, uma história aceitável para o padrão dos anos 1990, mas completamente fora da realidade em 2025.

Por que ver esse filme? Emilia Pérez pode não agradar a todos, principalmente a nós, brasileiros, que torcemos por Fernanda Torres e Ainda Estou Aqui, porém, seu estilo e sua abordagem direta de temas sensíveis certamente provocarão reações diversas. O filme atende bem ao papel social ao qual se propõe, gera reflexão e debate numa sociedade que busca cada vez mais andar para trás ou se estagnar. Diante disso, mesmo sendo polêmico, ainda é um lembrete de que a tela grande pode ser um espaço para a reinvenção radical e para contar histórias que desafiam o status quo. Independentemente das críticas e polêmicas, num mundo onde a segurança narrativa e a homogeneidade estética reinam, a audácia de Audiard e sua equipe é um sopro de ar fresco, um lembrete de que o cinema ainda pode nos surpreender e nos desafiar. Boa sessão!

Odailson Volpe de Abreu


Anuncie com Jornal Noroeste
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