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“Diário de um Adolescente”, uma crônica da humanidade


Por: Dr. Felipe Figueira
Data: 19/09/2024
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“Diário de um Adolescente” (1995) é um filme trágico em que várias instituições sociais, como o Estado, a religião, a escola e a família encontram-se em crise, inaptas para enfrentar o problema trazido pela película: adolescência e uso de drogas. O personagem principal, Jim Carroll, deixa de ser um expoente jogador de basquete escolar para cair por completo no uso de drogas, do álcool à heroína.

De imediato o filme em questão, que é baseado no diário de Jim, chama a atenção para a semelhança com “Laranja Mecânica” (1971). Dentre as características em comum estão que em ambos os filmes os grupos são compostos por quatro adolescentes, além do que há a presença de violência a pessoas velhas e a prática de outros delitos, como furto, roubo e homicídio. Alguém poderia pensar que uma história se inspira na outra, porém, a vida é cheia de repetições, sendo que na vida real há vários roteiros iguais.

O papel da escola em “Diário de um Adolescente” é negativo. Nas primeiras cenas há a figura de um padre educando pelo castigo, na verdade, apenas castigando Jim. Por aí se vê que o papel da escola será pífio ao longo da película, até que o adolescente sai da escola junto com outros colegas.

A educação é criticada ao longo da obra, mas, nem por isso é preciso cair em outro extremo, como se fosse culpa da escola o uso de drogas de Jim e seu grupo, composto por Pedro, Mickey e Neutron. É importante trazer essa ressalva porque a educação não pode e nem deve ser vista enquanto fim de tudo. A escola não é a única instituição social existente e nem o professor é um redentor. Todavia, à escola cabe um papel importante na sociedade, o que implica que ela, devido à sua amplitude, deve estar em contato contínuo com outras instituições, como, no caso brasileiro, com o Conselho Tutelar e com programas e órgãos relacionados à saúde. E por que esse cuidado na escola e essa interdisciplinaridade? Porque muitas vezes os professores são os únicos que olham os alunos em meio ao dia a dia e à sua respectiva correria.

Voltando à questão do filme, a realidade de um usuário de drogas é exibida sem cortes. No início as drogas se mostram como algo prazeroso e glorioso, mas depois acabam por consumir a pessoa até arrasar toda a sua dignidade. A dinâmica apresentada pela película vai do júbilo ao declínio. Dinâmica semelhante se observa em “Laranja Mecânica”, sendo que Alex DeLarge vai do poder à infâmia.

Jim Carroll esclarece como se dá a dependência, que começa enquanto algo simples e depois adquire proporções inimagináveis: “Primeiro, é um lance de sábado à noite. Você fica legal como um gângster ou um grande astro do rock. É uma coisa para matar o tédio, entende? Chamam isso de geral, um pequeno hábito. E você se sente tão bem que começa a fazer nas terças, nas quintas... pega você. Todo cara que eu conheço diz que não vai acontecer com ele. Mas acontece.”

É preciso que quem se coloca a estudar a questão das drogas vá além da retórica moralista, mas que se coloque a vê-la enquanto um problema social e de saúde.  Segundo a Classificação Internacional das Doenças (CID), há várias doenças oriundas do uso de drogas. Portanto, o discurso simplista da punição não serve de nada para tratar a causa. Quem acredita que para acabar com a Cracolândia em São Paulo bastam meia dúzia de policiais e algumas pauladas nada compreendeu da vida em sociedade.

O que se visualiza em “Diário de um Adolescente” é que o presídio às vezes é uma instituição inevitável a quem se envolve com a marginalidade. Um furto leva a um roubo até que a pessoa se encontra atrás das grades. Assim sendo, e como várias instituições sociais falharam na vida do apenado, a prisão deve ter um discurso relacionado à dignidade da pessoa humana. A prisão deve servir como um lugar para que as pessoas que se perderam ao longo da vida possam se encontrar. A prisão deve ser vista além do simplismo punitivista, mas como um lugar que tenha sentido social positivo.

É a partir do princípio de sentido moral que os presídios devem ter, no que tange à educação, um projeto político-pedagógico. Nesse sentido veio o trabalho pioneiro do professor Roberto da Silva, “Didática no cárcere” (2018). Ainda segundo Silva (2019, p. 5), ao analisar em particular o Brasil, é preciso superar o discurso da “res”: “Sendo o 3º país que mais encarcera no mundo, com uma população prisional próxima de 700 mil pessoas, majoritariamente jovens, afrodescendentes, de baixa escolaridade, baixa qualificação profissional e oriundos de periferias urbanas, não dá para continuar entendendo o crime, a pena, a prisão apenas em seus aspectos punitivos. Para estas pessoas falharam a família, a religião, a escola, a comunidade, o mercado de trabalho e as políticas públicas e a prisão talvez seja a última oportunidade para elas se descobrirem enquanto seres humanos, descobrirem que têm potenciais e qualidades a serem desenvolvidas. Temos então que superar o discurso das res (reeducação, ressocialização, reintegração, regeneração, etc) e passar a conceber a prisão a partir de um projeto político pedagógico que tenha objetivos, métodos, profissionais e metas comprometidas com a devolução do preso à sociedade em condições melhores do que as de quando ingressou na prisão. Só assim estas pessoas terão alguma chance de disputar em pé de igualdade as oportunidades que a própria sociedade cria.”

“Diário de um Adolescente”, apesar da dureza, e talvez por causa dela, pode figurar enquanto um bom material de formação tanto para adolescentes quanto para estudantes universitários. Não se trata de dizer “olhe onde as drogas podem te levar”, mas de pensar justamente além de tal simplismo, vendo o quão complexa é a vida em sociedade e o quão cheia de falhas as suas instituições podem ser.

Diário de um Adolescente (no original em inglês: “The Basketball Diaries”)

Ano: 1995

Direção: Scott Kalvert

Elenco:  Leonardo DiCaprio, Mark Wahlberg, Juliette Lewis, Ernie Hudson.

Gênero: Drama

 

 

 

 

 

 

Roberto da Silva & Felipe Figueira. Da história de vida à Pedagogia Social: entrevista com Roberto da Silva. Revista Pontes, Paranavaí, 2019, v. 5, p. 1-5. Disponível em: http://revistapontes.com.br/2019/09/10/da-historia-de-vida-a-pedagogia-social-entrevista-com-roberto-da-silva-usp/. Acesso: 03/08/2020.

Roberto da Silva.  Didática no Cárcere II: entender a natureza para entender o ser humano e seu mundo. 2. ed. São Paulo: Giostri Editora, 2018.

Dr. Felipe Figueira

Felipe Figueira é doutor em Educação e pós-doutor em História. Professor de História e Pedagogia no Instituto Federal do Paraná (IFPR) Campus Paranavaí.


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