30 anos: Crianças e adolescentes sujeitos de direitos
Olympio de Sá Sotto Maior Neto*
Nesses últimos quarenta e três anos, minha vivência como profissional do Ministério Público fez por fortalecer, sempre e mais, a crença sincera de que a tarefa preferencial, para todos que desejam ver construída uma sociedade melhor e mais justa, deve estar umbilicalmente ligada à efetivação dos direitos já prometidos no ordenamento jurídico para as nossas crianças e adolescentes.
Não alcançaremos uma desejada sociedade melhor e mais justa se continuarmos perdendo gerações de crianças e adolescentes para a subcidadania, com os seus perversos contornos da exploração, opressão e exclusão social.
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), cumprindo comando da Constituição Federal, materializou proposta de se dar tratamento privilegiado à população infanto-juvenil, rompendo com o mito de que a igualdade resta assegurada ao tempo em que todos recebem tratamento idêntico perante a lei.
Com indiscutível acerto, concluiu o legislador do ECA que, quando a realidade social está a indicar desigualdade, tratar todos de forma igual perante a lei, antes da garantia de isonomia, conduz à cristalização das desigualdades, dando-se, muitas vezes, contornos de legalidade a situações de afastamento do exercício dos direitos elementares da cidadania. Dessa maneira, como fórmula para estabelecer a isonomia material, entendeu-se indispensável que as crianças e adolescentes marginalizados na realidade social (vale dizer, que se encontram à margem dos benefícios produzidos pela sociedade) venham a receber, pela lei, um tratamento desigual, necessariamente privilegiado.
Sob esse enfoque é que encontramos como suporte teórico para o ECA a doutrina da proteção integral, cuja tese fundamental estabelece incumbir à lei assegurar às crianças e adolescentes a possibilidade do exercício dos seus direitos fundamentais. Assim, pela nova legislação, as crianças e adolescentes não podem mais ser tratados como meros objetos de intervenção da família, da sociedade e do Estado, devendo-se agora reconhecê-los sujeitos dos direitos elementares da pessoa humana em peculiar fase desenvolvimento, de maneira a propiciar o surgimento, na maioria dos casos, de verdadeira ponte de ouro entre a marginalidade e a cidadania plena.
Alertado pela realidade social e alentado pelo propósito de justiça, o legislador do ECA estabeleceu um conjunto de normas tendentes a colocar a infância e juventude a salvo de toda e qualquer forma de negligência, discriminação, violência, crueldade, exploração e opressão, cumprindo mandamento constitucional no sentido de ser dever da família, da sociedade e do Estado assegurar às crianças e adolescentes, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária (art. 227, da cf).
Insista-se no sentido de que a proposta da lei é o da universalização dos direitos humanos relacionados à infância e juventude, alcançando assim todas as crianças e adolescentes. Ou seja, numa perspectiva de justiça e solidariedade, a lei quer que todas as crianças e adolescentes possam exercitar os direitos que parte da população infantojuvenil já exercita.
Como interveniente obrigatório nas questões que afetam as crianças e adolescentes encontra-se a Justiça da Infância e Juventude, que agora, em razão do ECA, assume função de ser o espaço destinado à efetivação dos direitos da população infantojuvenil. A ideia central é a de que as regras enunciadas na legislação se constituem comandos obrigatórios à família, à sociedade e ao Estado, aguardando-se, especialmente por parte do poder público, o cumprimento das normas estabelecidas. Todavia, se o administrador, espontaneamente, não tornar concreto o que lhe foi determinado pela lei, comparece disponível ao interessado um conjunto de medidas judiciais especificamente destinadas à satisfação, via prestação da tutela jurisdicional, dos direitos violados. E porque se acredita no Ministério Público como fiel defensor de um Estado genuinamente democrático, o legislador determinou-lhe o zelo pelos interesses individuais, coletivos e difusos ligados à proteção da infância e da juventude, que não raras vezes implicará cobrar das autoridades públicas uma atuação mais eficiente no fornecimento de educação, alimentação, saúde, profissionalização, cultura, lazer, entre outros direitos previstos no ordenamento jurídico. A Defensoria Pública, igualmente, tem idêntica atribuição e importância.
Consigne-se, nesse passo, a importância dos Conselhos dos Direitos das Crianças e dos Adolescentes, previstos no art. 88, inc. II, do ECA, como órgãos com caráter deliberativo (são definidores da política pública de atendimento à infância e juventude nas esferas municipais, estaduais e nacional) e que não podem prescindir da participação popular (diga-se paritária, ou seja, apresentando igual número entre os representantes dos órgãos governamentais e os indicados pelas entidades que atuam na defesa – ou no atendimento – dos direitos das crianças e dos adolescentes).
Nesse contexto, igualmente se cuidando da desejada implementação do ECA e no que diz respeito à política de atendimento à infância e juventude de se reforçar o raciocínio de que – além da família (campo privilegiado para o afeto e principal agência de socialização do ser humano) e da escola (que, como quer o comando constitucional, deve visar ao pleno desenvolvimento da pessoa, sua qualificação para o trabalho e, principalmente, seu preparo para o futuro exercício da cidadania) – lugar de criança é nos orçamentos públicos, cumprindo-se o princípio constitucional da prioridade absoluta no que tange à preferência na formulação e execução das políticas públicas, assim como, especialmente, à destinação privilegiada de recursos para a área (art. 4º do ECA), tanto que o Ministério Público do Paraná, em conjunto com o Centro Marista de Defesa da Infância, lançaram a Plataforma OCA (Orçamento Criança e Adolescente), desenvolvendo metodologia que identifica quanto cada Município paranaense destina e executa para políticas de atenção à infância e adolescência.
Não se tenha dúvida de que esse é o caminho: fortalecimento dos Conselhos dos Direitos da Criança e do Adolescente de maneira que, em todos os Municípios, seja realizado diagnóstico da efetiva situação da infância e da juventude para restar traçada adequada política de atendimento às necessidades detectadas. Como motivo a festejar, cita-se, em tal seara, decisão do então presidente do Supremo Tribunal Federal no sentido de que “não há dúvida quanto à possibilidade jurídica de determinação judicial para o Poder Executivo concretizar políticas públicas constitucionalmente definidas, como no presente caso, em que o comando constitucional exige, com absoluta prioridade, a proteção dos direitos das crianças e dos adolescentes, claramente definida no Estatuto da Criança e do Adolescente”, e que “essa política prioritária e constitucionalmente definida deve ser levada em conta pelas previsões orçamentárias, como forma de aproximar a atuação administrativa e legislativa (Annäherungstheorie) às determinações constitucionais que concretizam o direito fundamental de proteção da criança e do adolescente” (Min. Gilmar Mendes, Suspensão de Liminar 235-0, de Tocantins, datada de 8 de julho de 2008). Igualmente, vale mencionar decisão do Superior Tribunal de Justiça no sentido da obrigatoriedade de efetivação, por parte do administrador público, da política deliberada pelos Conselhos dos Direitos: “1. Na atualidade, o império da lei e o seu controle, a cargo do Judiciário, autoriza que se examinem, inclusive, as razões de conveniência e oportunidade do administrador. 2. Legitimidade do Ministério Público para exigir do Município a execução de política específica, a qual se tornou obrigatória por meio de resolução do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente. 3. Tutela específica para que seja incluída verba no próximo orçamento, a fim de atender a propostas políticas certas e determinadas. 4. Recurso especial provido” (resp 493811, 2ª T., Rel. Min. Eliana Calmon, DJ de 15/03/04).
Finalmente, na esteira do comando constitucional indicativo da descentralização político-administrativa e consequente municipalização das ações, indispensável comparece o estabelecimento de rede de proteção capaz de proporcionar a todas as crianças e adolescentes o atendimento dos seus direitos fundamentais (v. nesse sentido a publicação do Ministério Público do Paraná intitulada “Município que respeita a criança – Manual de orientação aos Gestores Municipais”), com destaque para os Conselhos Tutelares, enquanto órgãos encarregados não só de fazer o atendimento das crianças e adolescentes em situação de risco pessoal, familiar e social, mas também de fiscalizar o funcionamento de todo o sistema de garantia dos direitos das crianças e adolescentes.
A expectativa democrática nestes 30 anos de vigência da lei é então a de que, quando da efetivação do Estatuto da Criança e do Adolescente pela ação dos poderes públicos (com a participação obrigatória da sociedade civil) e, se necessário, pela intervenção positiva por parte, especialmente, do Ministério Público e do Poder Judiciário no Juízo da Infância e Juventude, estar-se-á colaborando decisivamente para que a República Federativa do Brasil, salvaguardado o princípio de respeito à dignidade humana, buscando-se a superação das desigualdades sociais e a erradicação da pobreza, venha a alcançar, o quanto antes, seu objetivo fundamental: o de instalar – digo eu, a partir do atendimento aos direitos das crianças e adolescentes – uma sociedade livre, justa e solidária.
* Procurador de Justiça e coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Proteção aos Direitos Humanos.