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Acasos e amigos de infância


Por: Dr. Felipe Figueira
Data: 29/05/2020
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Há um filósofo romeno, Emil Ciorán (1911-1995), que teve a vida inteira marcada pela depressão, pela insônia e pelo suicídio (apesar de tudo, ele não se suicidou). Certa vez, ao comentar sobre seu espírito pesaroso, sua mãe foi extremamente direta: “Se eu soubesse teria feito um aborto”. O dizer da mãe sobre a infelicidade do filho tornou-se emblemático para o filósofo, que de forma alguma a condenou, mas o possibilitou ver a vida sob o viés do acaso e da sorte, afinal, ele poderia muito bem sequer ter existido.

O pensamento de Ciorán acerca do acaso e da sorte me fez lembrar de alguns amigos de infância, sendo que por infância aqui me remeterei ao período de 5 a 11 anos. Estudei até os 9 anos na escola Stella Maris, atual Santa Terezinha, em Paranavaí, e após isso, até a conclusão do Ensino Médio, na Fundação Bradesco.

Entre os 5 e 6 anos de idade eu tive um grande amigo, que chegamos a estudar juntos por dois anos. Íamos juntos à escola, brincávamos todos os dias, frequentávamos a casa um do outro, etc. Vida normal de crianças normais. Meu amigo tinha o dom da pintura, conseguia retratar o que bem entendia. Entretanto, com o passar dos anos, especialmente na fase da adolescência, acabamos por nos afastar e esse meu amigo se aproximou de usuários de drogas e, infelizmente, acabou por se tornar um usuário. Ele foi criado com os avós e os tios, mas, também por infelicidade, alguns de seus parentes acabaram por se envolver com drogas. Uma vez visitei esse meu amigo em uma clínica de recuperação de dependentes químicos. Que dia angustiante!

Quando eu estava na segunda série, conheci um novo amigo. Desde criança, e isso era nos idos de 1996, esse meu amigo sabia mexer com eletrônicos. Adorava desmontar televisões, rádios e certas peças de carros e motos. A exemplo do meu primeiro amigo, com esse eu também brincava, saía, íamos na casa um do outro. Porém, também à semelhança do outro amigo, esse começou a fazer algumas “amizades” problemáticas, o que o levou ao uso de drogas e outras práticas ilícitas. Resultado? Ficou preso por anos e anos. Ele foi criado pelos pais, todavia, o seu pai morreu quando ele era muito jovem e a mãe teve de se virar como pôde para trazer o sustento para dentro de casa.

Um pouco mais crescidinho, com uns 11 anos, fiz uma nova amizade, com um menino esperto demais. Ele sabia fazer pipas como ninguém! Isso me causava certa inveja, pois as minhas pipas não chegavam a subir meio metro, e isso quando subiam. Ele foi criado pelos pais, sendo que a mãe era bastante doente e o pai era caminhoneiro, passava dias e dias fora de casa. E mais uma vez a cena dos meus outros amigos se repetiu com esse: se envolveu com pessoas que praticavam atos ilícitos, como o uso de drogas ilícitas, furto e roubo. Para a minha surpresa e verdadeiro espanto, já que não foi nada premeditado, a primeira vez que fui a uma penitenciária (em razão dos meus estudos), já logo na primeira cela eu tive contato com o meu amigo. Que terrível choque de contrastes! Foi impossível não chorar.

Tive alguns amigos, claro, que não foram parar atrás das grades ou que não se tornaram dependentes químicos. Alguns deles se graduaram, outros se concursaram, sendo que inclusive os visitei em outras cidades em ocasião de congressos. Que satisfação ver que esses meus amigos, que tiveram a mesma formação básica que eu tive, estavam em boas universidades e com um futuro profissional direcionado. Tenho amigo de infância e início de adolescência que hoje é promotor de justiça, publicitário, gastrônomo, organizador de eventos, açougueiro, etc., e muitos já são pais e mães.

Eu? Fui criado com os meus pais e com os meus avós, nunca me faltou nada de fundamental em casa, tornei-me professor de História e Pedagogia e casei-me há nove meses. Porém, e voltando ao filósofo Ciorán, o que fica para mim nesse texto é que a vida é cheia de acasos, de acidentes, e que, por mais importante que seja a educação, por mais importante que seja a família, há sempre um elemento de incógnita na vida, pois ela é, segundo Nietzsche, filósofo que Ciorán tanto apreciava, um “(...) poder obscuro, impulsionador, inesgotável que deseja a si mesmo” (NIETZSCHE, 2003, p. 30).

 

Friedrich Nietzsche. Segunda consideração intempestiva: da utilidade e desvantagem da história para a vida. Trad. de Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003.

Dr. Felipe Figueira

Felipe Figueira é doutor em Educação e pós-doutor em História. Professor de História e Pedagogia no Instituto Federal do Paraná (IFPR) Campus Paranavaí.


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