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“A cabeça bem-feita”, de Edgar Morin


Por: Dr. Felipe Figueira
Data: 30/09/2021
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             Tudo pode deixar o indivíduo com a “cabeça cheia” e não com uma “cabeça bem-feita”, termos de Montaigne, mas que são os guias de Morin em seu belo texto sobre os limites e potencialidades do saber. Limites porque a cabeça de ninguém consegue abarcar o todo, que é, simultaneamente, maior e menor que as partes; e potencialidades porque as partes fazem parte do todo, sendo também maiores e menores do que ele. Tudo isso, a um primeiro olhar, pode parecer sem sentido, mas não, possui sentido e complexidade, este um termo basilar para a compreensão de Edgar Morin.

            É belíssima e curiosa a forma com que o pensador inicia o seu texto e o dedica:

 

Este livro é dedicado a todos, mas poderia ajudar particularmente professores e alunos. Gostaria de que estes últimos, se tiverem acesso a este livro, e se o ensino os entedia, desanima, deprime ou aborrece, pudesse utilizar meus capítulos para assumir sua própria educação. (MORIN, 2004, p. 5).

 

            Logo se vê que se tratará de um livro voltado à área de educação, mas não só, afinal, o ser humano se expande para além da sala de aula. E não só, ainda, porque a partir do momento que o saber passa a olhar a vida como um todo (complexidade), é impossível deixá-lo reservado a poucas horas, no caso, a uma escola.

            Por outro lado, é interessante notar desde já que a educação pode deixar a pessoa com a cabeça cheia. É o caso de um currículo que se esgota em si mesmo, pouco se importando com conexões com a vida. Uma Química pura não tem sentido, pois ela é uma ciência complexa, que depende de inúmeros outros saberes; a Geografia é um exemplo de outra ciência complexa por natureza; e a História também não pode ser isolada, ao que Morin chamará de “coisificação”: “(...) a instituição disciplinar acarreta, ao mesmo tempo, um perigo de hiperespecialização do pesquisador e um risco de “coisificação” do objeto estudado, do qual se corre o risco de esquecer que é destacado ou construído.” (MORIN, 2003, p. 106).

            O que tem sido destacado pode parecer um clichê, mas não é. Pode parecer um clichê porque Montaigne já apregoava uma “cabeça bem-feita”, e Nietzsche já criticava o saber pelo saber. Sim, esses dois pensadores alertaram essas críticas, no entanto, Morin tem a arte de contextualizar um pouco mais no que diz respeito à educação e às consequências para o indivíduo; além disso, entre os estudos de Morin e o dos dois pensadores referidos há uma diferença temporal a ser considerada. Por fim, como é necessário promover uma cabeça bem-feita!

            Não foram poucas as vezes que em minha atividade docente, seja na área de História ou na de Pedagogia, eu me questionei sobre a força do que eu ministrava. Não foram poucas as vezes, também, que mudei as rotas quando percebia que o caminho que eu conduzia levava todos a uma cabeça cheia: dados atrás de dados, ausência de reflexão e generalização, etc. Ao contrário, quando eu saio da minha aula e ela própria me serviu como norte reflexivo, sinto que a minha cabeça ficou bem-feita, crítica, reflexiva, cheia de ligações entre o todo e a parte, e sabendo dos limites (e potencialidades do meu ofício).

            Outro ponto que Morin ataca, como um dos sinais da cabeça cheia, é a hiperespecialização dos saberes. Sabemos dos benefícios da especialização. Um advogado especialista em direito de família é mais adequado para resolver um caso de adoção do que um penalista. Todavia, as especializações não podem se converter em hiperespecializações, sob o risco de serem um problema antes de uma solução. Não adianta muito resolver um problema e criar vários outros: isso deixa o paciente ou o cliente com a cabeça cheia de dificuldades. É claro que uma cabeça bem-feita também sabe que os problemas e as dificuldades são próprios da existência, mas muitos deles podem ser diminuídos e mesmo resolvidos por uma cabeça que saiba dialogar com a vida e com o saber. Nas palavras de síntese de Morin, valendo-se de Montaigne:

 

A primeira finalidade do ensino foi formulada por Montaigne: mais vale uma cabeça bem-feita que bem cheia.

O significado de “uma cabeça bem cheia” é óbvio: é uma cabeça onde o saber é acumulado, empilhado, e não dispõe de um princípio de seleção e organização que lhe dê sentido. “Uma cabeça bem-feita” significa que, em vez de acumular o saber, é mais importante dispor ao mesmo tempo de:

- uma aptidão geral para colocar e tratar os problemas;

- princípios organizadores que permitam ligar os saberes e lhes dar sentido. (MORIN, 2003, p. 21).

 

            A tarefa que Morin se propõe é a de pensar um pensamento unificador, que se abra ao contexto planetário. Vivemos cada vez mais um mundo planetário, onde na palma das mãos temos o mundo. Eis um clichê: em um segundo damos uma ou mais voltas ao mundo. Porém, essa volta não é pouca coisa: é preciso dar organização ao caos, ainda que este seja tão forte e pululante que escape ao indivíduo e às instituições. Porém, é nesse momento que um pensamento complexo e unificador é importante, enquanto um raciocínio que questione os princípios do conhecimento, e não só enquanto um abridor de fronteiras. Mais do que abrir as fronteiras, é preciso pensar amplamente sobre o pensar, do contrário, os problemas só (a palavra é essa: só) se multiplicarão.

            Todas essas ideias não são de pouca monta, e precisam ser levadas, segundo Morin, aos três degraus básicos do ensino: primário, secundário e superior. Todavia, quantas resistências elas receberão? Sem dúvida que inúmeras, pois questionar a “coisificação” é também questionar as posses dos saberes. Se o saber é uma coisa, civilmente ele é uma propriedade, e, como tal, pode ter dono. Erich Fromm bem nos ajudaria a alargar essa discussão, e bem ajudaria que a cabeça bem-feita ficasse ainda mais bem-feita, no entanto, não precisamos estender mais esta resenha, pois não é preciso “enchê-la” com mais ideais. Diante de tantas resistências possíveis no meio do caminho, a dedicatória do livro de Morin pode ter todo sentido.

Edgar Morin

 

Edgar Morin. A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Trad. de Eloá Jacobina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.

Dr. Felipe Figueira

Felipe Figueira é doutor em Educação e pós-doutor em História. Professor de História e Pedagogia no Instituto Federal do Paraná (IFPR) Campus Paranavaí.


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