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O Milagre


Por: Odailson Volpe de Abreu
Data: 24/11/2022
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É interessante como as estreias no cinema estão em baixa ultimamente e como o serviço streaming tem sido o grande alimentador do público para novas obras cinematográficas nesse tempo pós (será?) pandemia. Já faz um tempo que tenho comentado sobre como esse projeto empreendido pela Netflix, de entregar um filme novo por semana, tem proporcionado ao público boas experiências. Essa semana comento sobre mais uma dessas experiências positivas. Um filme bonito de se ver, com grandes acertos técnicos e com uma mensagem forte. De tudo, o que chama mais a atenção é a forma como esse drama psicológico recheado de reviravoltas é capaz de despertar tensão e flertar de maneira velada, mas eficaz, com o gênero de terror. Essa semana, a Coluna Sétima Arte traz algumas considerações sobre O Milagre.

Entre erros e acertos, a Netflix se tornou ao longo de 2022 um reduto para grandes artistas do meio cinematográfico que não têm encontrado espaço entre os grandes estúdios. Bem por isso, temos filmes bem medianos, mas muitos que são realmente grandes obras. Convém classificar O Milagre nessa segunda categoria.

O diretor argentino Sebastián Lelio se viu muito à vontade a frente desse projeto. Tanto que decidiu utilizar um tipo muito peculiar de metalinguagem, que parece meio deslocado, mas que, ao final, diante de um breve momento de reflexão, é capaz de gerar uma certa catarse sobre a forma como as construções midiáticas instigam a humanidade à crença cega, ou mesmo ao fanatismo. Não estranhe se o filme começar de uma forma contemporânea e depois se desenrolar no passado. Seguindo essa mesma trilha nada ortodoxa, há momentos de quebra da quarta parede que irão reforçar ainda mais essa ideia. Alguns desses elementos passarão despercebido por uns e outros terão a impressão de que esses elementos deveriam ser melhor trabalhados, mas mesmo assim estão ali, como um tipo de inovação num gênero em que esse tipo de abordagem não é nada usual.

Independentemente disso, porém, o trabalho técnico foi excelente. A história, que é uma adaptação da obra homônima de Emma Donoghue, tem um roteiro bastante consistente e escrito a seis mãos. O mesmo esteve sob a responsabilidade do diretor Lelio, da própria Donoghue e com a ajuda de Alice Birch. Eles tiveram a perspicácia de conceder aos personagens secundários tempo suficiente para se tornarem relevantes sem que roubassem o espaço das protagonistas, pois é entre elas que tudo acontece. Além do mais, o clima constantemente tenso, as revelações avassaladoras e as reviravoltas tendem a surpreender sempre o expectador. Outro aspecto relevante do roteiro é a forma como ele foi capaz de trazer para a tela assuntos delicados, controversos e mesmo assim, sem ofender ou escandalizar ninguém. Há muito tempo o cinema gosta de explorar os embates entre a Ciência e a Fé. Alguns fizeram isso muito bem, outros banalizaram a questão de forma muito superficial, mas em O Milagre o equilíbrio é ponto alto sobre esse tipo de embate.

Abordar questões como fundamentalismo, fanatismo e cegueira religiosa em obras de entretenimento é sempre muito bom, pois qualquer reflexão que ajude as pessoas a compreenderem as coisas de forma mais racional é sempre bem-vinda. A forma como a trama demonstra os sacrifícios que são necessários para a sustentação da fé é muito interessante e vão muito além de uma discussão rasa sobre as crenças individuais ou coletivas.

A respeito dos aspectos técnicos, é preciso considerar a maneira como os enquadramentos, o lindo trabalho de fotografia — que lembra muito O Ataque dos Cães — e a trilha sonora colaboram para o clima de tensão e estranheza. O cenário ambientado em uma vila isolada do século XIX, na Irlanda, contribui muito para essa ideia de que coisas estranhas podem acontecer ali a qualquer momento e que a única opção para as pessoas é se agarrar cegamente à sua fé.

Esse tipo de filme, um drama psicológico, nunca se constrói apenas por uma elevada qualidade técnica. Nesse tipo de obra, boas intepretações são essenciais para que ele não acabe ficando aquém do que é proposto. Em O Milagre, a escolha pela talentosa atriz em ascensão Florence Pugh foi muito bem acertada. Ela interpreta uma enfermeira que, a pós enfrentar os horrores da guerra da Criméia, perdeu sua fé. Uma personagem, pesada, densa, repleta de camadas e segredos, que vai se revelando ao público ao longo da trama. Ela faz um excelente contraponto à personagem de Kíla Lord Cassidy, que interpreta a garotinha que supostamente não come a meses e que se alimenta da fé e da oração, o que seria o “milagre” do título. Cassidy impõe à sua personagem um ar de vulnerabilidade, mas ao mesmo tempo uma aura de intenso mistério, o que conquista o público logo de cara. Ambas se completam em cena e, por mais que estejam em lados opostos, não transmitem a ideia de antagonismo. Outros nomes somam-se ao elenco e colaboram para bom desenvolvimento da trama, mesmo que com menor participação. Como o caso de Tom Burke, por exemplo, que interpreta o jornalista que tem um papel essencial na trama.

Falando em trama, vamos a ela! Em 1862, uma enfermeira inglesa, Lib Wright, é contratada pelos chefes de um vilarejo para investigar o estranho caso de Anna, uma garota que já está a quatro meses sem comer. Lib e uma freira irão revezar para nunca deixarem Anna sozinha, assim terão certeza que ela não está se alimentando de alguma forma. Do contato entre a garota do milagre e a enfermeira cética irá surgir uma relação capaz de trazer à tona muitos fantasmas do passado.

Por que ver esse filme? Longe de ser um filme perfeito, O Milagre é bom o suficiente para prender o espectador do início ao fim. Uma obra feita para crentes e não crentes, pois permite uma excelente reflexão a respeito da maneira como cada pessoa lida com as suas verdades e como isso afeta a sua decisão em querer ou não acreditar. O final poderia ter sido um pouco melhor elaborado, mas ainda assim é otimista e tem um tom de redenção. Um filme tão envolvente quanto bonito de se ver. Aproveite que ele está disponível na Netflix e boa sessão!

Assista ao trailer:

Odailson Volpe de Abreu


Anuncie com Jornal Noroeste
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