Trabalha ou só dá aula?
Poucas coisas irritam mais um professor do que pergunta: “o senhor trabalha ou só dá aula?" Neste momento o mestre respira fundo e reúne toda a sabedoria e paciência que se espera dele. Explica, então, letra por letra que “dar” aula é uma forma de trabalho. De fato, o professor não apenas trabalha, mas trabalha muito na escola, em casa, na rua, comendo, lavando louça, cuidando dos filhos, viajando, descansando, dormindo e até quando está em férias.
Aliás, o trabalho dos professores, como foi dito em um meme que circulou recentemente, é um daqueles nos quais é preciso trabalhar para se preparar para o trabalho e depois que sair do trabalho é preciso trabalhar mais para de fato terminá-lo. No entanto, grande parte das atividades dessa profissão é invisível para a maioria das pessoas. Enquanto o ato de lecionar não é visto por muito como efetivo trabalho mas como algo que se “dá”, o trabalho anterior e posterior à aula é ainda menos considerado, inclusive por gestores públicos e privados da área da educação.
Mas quais são as atividades que precisam ser feitas antes e depois da aula? São inúmeras e, nesse texto, só é possível mencionar algumas delas. Inicialmente, um docente, depois de uma graduação de quatro ou cinco anos, precisa continuar se atualizando o tempo todo. Seu exercício profissional se baseia na produção científica, a qual está em constante movimento. Estudar as teorias mais recentes, tomar contato com as novas técnicas e métodos de ensino e estar atento a tudo ao seu redor para que possa ser aproveitado em suas aulas é algo incessante.
Depois, é preciso propriamente fazer um planejamento e a preparação de cada aula, o que é desgastante e demanda muito tempo. Há de ser muito estudioso e criterioso para escolher os conteúdos, as temáticas, as metodologias e as técnicas de ensino. A confecção do material para ser apresentado em sala de aula, tais como slides, cartazes, lição de casa etc. precisa, evidentemente, ser feita com antecedência.
Chegando à classe, o mestre se depara com trinta, quarenta ou mais seres humanos em desenvolvimento, cada um com sua história de vida, suas particularidades, dificuldades, personalidades e humores. Cada um precisa ser afagado, incentivado, apoiado, observado, corrigido e instruído. É necessário cuidar para que todos prestem atenção em ti, verificar o caderno de cada estudante, suas atividades, seu desenvolvimento e manter um relatório sobre cada um deles, o qual será apresentado ao conselho de classe e aos pais.
Aliás, inúmeros registros burocráticos precisam ser feitos antes, durante e depois da aula. É necessário manter o famigerado “livro de chamada” em dia. Preencher as presenças, anotar os conteúdos e demais intercorrências de cada aula. Registrar as avaliações, os conceitos parciais e o conceito final de cada período.
Depois da aula o professor ainda precisa se preocupar com a leitura e correção das tarefas e avaliações aplicadas. Enquanto isso é preciso estar também com a cabeça na aula seguinte. Repete-se então todo o percurso anteriormente descrito. Ao final de cada bimestre, por sua vez, é preciso participar ativamente de reuniões de conselho de classe e reuniões com responsáveis, as quais costumam ocorrer em horário diverso da aula e, em alguns casos, até mesmo do horário de trabalho do docente.
Sabe aquelas rodas depois do almoço do domingo em família? Então, o professor, quando lá pode estar, estará apenas parcialmente, pois mesmo que ele não queira uma parte de sua cabeça estará pensando nas tarefas atrasadas, em como preparar a próxima aula, como atrair a atenção dos alunos, como lidar com aquele caso difícil que, inclusive, parece estar relacionado com fome e vulnerabilidade social. Depois que inventaram o whatsapp e o malquisto ensino remoto, a coisa piorou ainda mais de modo não há um segundo sequer que estamos livres do risco de recebermos uma demanda laboral.
Em suma, “dar aula” é trabalhar antes, durante e depois do momento em si com os alunos. O reconhecimento de que o trabalho professoral envolve um todo complexo é parte importante do processo para que possamos dimensionar de forma mais equilibrada as necessidades e as contribuições desses profissionais. A já batida demanda pela valorização desta categoria como condição para uma boa educação passa também por compreender claramente as características de seu trabalho e dar a ele o justo tratamento que merece.