Racismo reverso?
Logo depois que decidi que o tema desta coluna seria a pergunta “o racismo reverso existe?”, me deparei com uma reportagem no site uol.com com o título: “Jovem negro testemunha roubo de moto, mas é preso e condenado pelo crime”. Joel R. N. Junior, um trabalhador doméstico desempregado de 21 anos, está encarcerado desde junho de 2020 ainda que ao menos nove testemunhas e inúmeras outras evidências atestlm a inocência dele. Podemos extrair inúmeras análises dessa notícia, mas quero tomá-la ponto de partida para uma reflexão sobre a pergunta da abertura deste texto.
A expressão “racismo reverso”, por certo, faz referência a uma suposta discriminação racial contra brancos no Brasil. O caso de Joel nos ajuda a entender existência deste pretenso racismo à medida que ele nos conduz para a história e para os modos como a sociedade se organiza atualmente. Milhares de antepassados de Joel foram capturados na África por brancos e trazidos para cá para servirem de mão de obra escrava. Depois de quase quatrocentos anos, o Brasil foi o último da América a abolir a escravatura, mas não estabeleceu nenhuma política de recompensação. Ao contrário, iniciou um processo em que aos negros, como Joel, foram destinados os piores lugares sociais: a escravidão ilegal, a favelização, o desemprego, o trabalho precário, as restrições no acesso à educação, a criminalização e o extermínio.
Estes processos se ligam aos do presente. Embora os movimentos sociais negros tenham obtido importantes avanços, quando se compara a situação de brancos e negros, as pesquisas demonstram, por exemplo, que, em média, negros ganham menos que brancos, possuem menor escolaridade, maior taxa de analfabetismo e de encarceramento e são vítimas de homicídios em número muito superior aos brancos.
Estes fatos nos levam ao conceito de racismo estrutural, isto é, a um sistema repetitivo, coletivo e silencioso de discriminação racial arraigado na estrutura social, dispondo de vantagens para uns e prejuízos para outros. Por exemplo, em uma entrevista de emprego em que duas pessoas da mesma classe social concorrem à vaga, sendo um branco e outro negro, a probabilidade de o branco ser o contratado é muito maior. Em um caso como o de Joel, a probabilidade dele ser acusado e condenado se reduziria consideravelmente se ele tivesse a pele branca.
Trajetórias como a deste rapaz, de fato, sintetizam e reconstroem toda uma ordem social montada de modo a subalternizar um grupo étnico-racial. Em nenhum momento se falou que ele estava sendo preso por ser negro, mas são pessoas como ele que reiteradamente passam por muitas das situações aqui descritas. Esta discriminação que se realiza mais nas práticas que pelo discurso está profundamente enraizada e é, em boa medida, responsável pelo abismo racial brasileiro.
Mas se o leitor ainda não estiver convencido, é interessante fazer o “teste do pescoço”. Basta virar a cabeça para um lado e para outro e observar. Quantos advogados, médicos, engenheiros ou grandes empresários negros você conhece? Facilmente encontrará muito mais brancos nessas funções que negros, os quais, por sua vez, são vistos com mais facilidade em ocupações braçais de baixa renda. A verdade é que quanto mais se sobe na pirâmide social menor a presença negra e quanto maior a pobreza maior a negritude.
Sendo o racismo, portanto, um fenômeno coletivo e estrutural, é impossível falar em racismo reverso. Sistematicamente falando, a branquitude jamais passou pelas situações aqui tratadas. Ao contrário, foi a produtora e a beneficiária da escravidão e dos demais processos mencionados. O simples fato de as práticas sociais preterirem os negros, como Joel, faz com que brancos levem vantagem, por exemplo, na vaga de trabalho supracitada e mais dificilmente sejam vistos como suspeitos. Outras formas de discriminação, como o bullying, a homofobia e o machismo podem afetá-los, mas especificamente o racismo não é algo que os brancos sofram. Ao contrário, o desejável é que estes reconheçam sua condição de privilégio e se coloquem numa posição de apoio aos movimentos negros pelo fim destas disparidades.
Sugestão de leitura:
ALMEIDA, S. Racismo Estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro: Editora Jandaíra, 2020.