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O PROJETO BURGUÊS É O DE UMA VIDA SEM DIVERSÃO


Por: Josimar Priori
Data: 15/10/2020
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A gente não quer só comida / A gente quer comida / Diversão e arte” são os versos mais potentes da canção Comida, composta no ano de 1987 por Arnaldo Antunes, Marcelo Fromer e Sérgio Britto. Esta letra nos leva a refletir sobre as necessidades humanas, que não se resumem apenas a comer, mas envolvem também necessidades subjetivas como música, cultura e amor.  É interessante observar que o compositor as apresenta como um ideal, isto é, como algo a se alcançar. Os ideais são importantes para sabermos onde queremos chegar, mas, também, porque, por contraste, nos ajudam entender como é o mundo que vivemos. E como é este mundo?

Como escrevi na coluna anterior, a pandemia não trouxe nenhuma novidade, mas tem nos mostrado de maneira mais clara uma sociedade que valoriza a produtividade acima de tudo. De fato, o modo de produção capitalista tenta impor um estilo vida que se encerra no trabalho e que não deixa espaço para nada mais. Arte, cultura, lazer, atenção aos filhos, aos pais, o descanso, o ócio, o repouso se apresentam como heresias para um modelo de sociedade cuja medida é a quantidade de dinheiro que uma pessoa consegue acumular. Falar em diversão e felicidade soa até mesmo escandaloso, a não ser que se seja possível monetizá-las.

Este padrão remonta a pelo menos meados do século XVIII, quando a produção foi acelerada com a invenção das máquinas. Enquanto uma pequena minoria de austeros proprietários governava a produção com mãos de ferro, a grande maioria das pessoas se revezava entre desemprego, empregos precários, vidas miseráveis e poucas horas de descanso. Nesta época ocorreu também uma importante mudança cultural. Até então, o trabalho era visto como dor e sofrimento, como bem ilustra origem latina deste vocábulo: tripallium, um instrumento de tortura. A realização humana se dava fora do trabalho, quando o sujeito conseguia se libertar dessa atividade, que era considerada indigna e degradante.

Mas uma sociedade que busca impor como elemento central a produção em larga escala não poderia ver o trabalho como tortura. Para que a massa de trabalhadores aceitasse trabalhar 12, 14, 16 disciplinadas e repetitivas horas por dias a fio, eles não poderiam ver o trabalho como um castigo. Inicia-se então um deslocamento discursivo. O trabalho passa a ser representado como a atividade humana mais elevada: crianças são ensinadas sobre as recompensas do trabalho, igrejas instruem que o trabalho dignifica o homem e o governo cria leis que criminalizam a vadiagem. Antes uma atividade ultrajante, agora passa a ser glorificado e ganhar contornos redentores.

Na prática, porém, impõe-se uma razão instrumental que direciona todo o esforço humano para a produção de mercadorias. Este é o mundo cinza que se impõe para todos nós e que já começa desde cedo nas escolas, quando crianças são submetidas a exames, testes, metrificações e competições que as ensinam que a vida é uma briga para decidir quem produz e acumula mais. As artes, a música, as brincadeiras, os esportes, as matérias tidas como não produtivas – como história, sociologia e filosofia – são relegadas, quando muito, a um apêndice curricular. É preciso aprender desde cedo que há pouco tempo para diversão e muita mercadoria para produzir.

Não é, porém, a pretensão deste texto cometer a blasfêmia de condenar o trabalho. No entanto, é preciso colocá-lo em seu lugar. Isto é, a importância dele está em cada vez mais nos liberar dele próprio por meio da criação de recursos que tornem a quantidade de trabalho necessário para a sobrevivência cada vez menor. Desta maneira, abre-se espaço para que tenhamos tempo para diversão, arte, descanso e o desenvolvimento de inúmeras outras potencialidades humanas. Uma vida mais saudável requer, portanto, que encontremos um ponto de equilíbrio em que distribuamos melhor as riquezas advindas do trabalho e possamos ter tempo livre para escolhermos como queremos nos divertir e sermos felizes.  

Josimar Priori


Anuncie com Jornal Noroeste
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