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O que não é um diálogo?


Por: Fernando Razente
Data: 01/11/2021
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“O ‘diálogo’ é o que existe de mais destruidor.”

Alain Besançon, historiador francês.

 Algumas pessoas acreditam que palavras são como folhas brancas de papel. Com nosso pincel, colocamos nelas as cores que desejarmos. Não importa se o modelo que está no quadro à nossa frente é uma pintura de um horizonte em azul claro e laranja fosco. O que importa, na verdade, é a nossa vontade. Ela governa o “como” da arte.

Falar também é um tipo de arte. Comunicar-se é uma expressão, tanto estética quanto teórica. E diante da arte, temos sempre dois caminhos a tomar. Existe jeito certo e jeito errado de fazer arte? Ou a arte é o que eu quero que seja? Indo direito ao ponto e sem analogias: existe jeito certo de usar as palavras? Existe um método?

Mais, existe um significado objetivo para elas que me faça ter que ordená-las com clareza ao meu interlocutor ou posso ser como o mais famoso ovo antropomórfico Humpty Dumpty e fazer com que as palavras signifiquem exatamente aquilo que queremos que elas signifiquem?[1] Se não resolvermos essa questão primeiro, toda especulação sobre a necessidade de diálogo tornar-se-á mero flatus vocis[2].

Santo Agostinho (354-430 d.C.) em De Magistro[3], argumentava com seu filho Adeodato que palavras são sinais. O ser humano busca captar, na mente, a essência e a natureza de algo e expressá-la pela palavra falada. Portanto, a função da linguagem é harmonizar a natureza de uma coisa com a expressão, que é sinal dessa mesma coisa.

O termo “Deus”, e.g., deve sinalizar exatamente aquilo que Deus é. Como nosso processo de conhecimento das coisas é imperfeito, as palavras podem ser usadas de maneiras equivocadas, mas sua função é ser um sinal exato da coisa sinalizada. Digamos que o diálogo — a “guerra” de sinais entre duas ou mais pessoas — tem como objetivo ordenar de forma exata um pensamento a respeito de uma coisa.

Em um processo de conhecimento e expressão realizado entre duas pessoas, é natural que existam equívocos lógicos, falhas técnicas de linguagem, conflitos por sentido, refutações, erros grosseiros e algumas provocações desnecessárias. No entanto, só entra em diálogo quem acredita ser possível por meio deste recurso chegar a um consenso objetivo sobre o significado de uma coisa.

Como escreveu C. S. Lewis em Mere Christianity referindo-se ao objetivo da discussão: “A intenção da discussão é mostrar que o outro está errado. Não haveria sentido em demonstrá-lo se você e ele não tivessem algum tipo de consenso sobre o que é certo e o que é errado [...]”[4]. Portanto, o diálogo, o debate, a discussão e a retórica ocorrem sempre dentro de uma atmosfera de pressuposições básicas, como: possibilidade do conhecimento, objetividade da verdade e o valor da argumentação.

Por isso, se acreditamos — como argumentei no início do texto — que palavras podem ser usadas para simbolizar qualquer coisa que desejamos e que a linguagem é mera construção social, subjetiva e relativa, não faz o menor sentido dialogar. Diálogo não é acomodação da realidade à nossa vontade nem mesmo à vontade alheia por medo de divergência.

Essa concepção de diálogo como alguém que cede “[...] diante da palavra de outrem sem lhe opor algo sólido por temer fazer inimigos”[5] está totalmente errada, e é, de fato, o tipo de diálogo mais destruidor ao conhecimento.

De uma perspectiva bíblica da ética do diálogo, é “[...] certo agradar as pessoas na medida em que a Bíblia ordena que você agrade”[6]. Todavia, infelizmente é ainda é comum ver exageros ao encontrar pessoas que acreditam que diálogo nada mais é que “[...] uma conversa acolhedora e não crítica, muitas vezes tendendo a uma agradável, mas injustificada assimilação de ideias.”[7]

Dentro do contexto de relação entre fé e ciência, isso ainda se torna pior. Qualquer tentativa dos cientistas de argumentarem contra alguma doutrina religiosa é abafada com ostracismo eclesiástico. Por outro lado, muitos cristãos intelectuais quando expõem algumas falhas de raciocínio científico são tratados com esnobismo ou repreensão. Qual o caminho para o verdadeiro e proveitoso diálogo?

Bom, já descrevi acima alguns pressupostos básicos e necessários, como crença na possibilidade do conhecimento, verdade objetiva e importância da argumentação logicamente ordenada. No entanto, todos esses pressupostos carecem daquilo que muitos têm chamado de “virtude epistêmica", i.e., a capacidade de ser reverente e sério em considerar a validade e importância dos argumentos de seu oponente, tentando identificar seus pontos fortes e fracos, e a humildade em desejar estar aberto para aprender e reconhecer seus próprios limites e vulnerabilidades. Certamente, o diálogo entre religião e ciência nestes termos pode ser muito mais proveitoso.

 



[1] CARROLL, Lewis. Through the Looking-Glass and What Alice Found There, 1871.

[2] Do latim “pura emissão fonética”, i.e. sem sentido prático e real.

[3] Os fundamentos da teoria do conhecimento de Santo Agostinho aparecem na obra De Magistro, publicada em 388 d.C. como um tratado pedagógico na forma de colóquio pelo qual o pai Aurélio Agostinho, aclara a seu filho Adeodato.

[4] LEWIS, C. S. Cristianismo Puro e Simples. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009. p. 6.

[5] Famille chrétienne, n. 981, 31 octobre 1996.

[6] PRIOLO, Lou. Pleasing People - How Not to Be an “Approval Junkie”.

[7] MCGRATH, Alister. Ciência e religião: fundamentos para o diálogo. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2020. p. 19.

Fernando Razente

Amante de História, atuante com comunicação e mídia, leitor voraz e escritor de artigos de opinião e matérias jornalísticas.


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