O que não é um diálogo?
“O ‘diálogo’ é o que existe de mais destruidor.”
— Alain Besançon, historiador francês.
Algumas pessoas acreditam que palavras são como folhas brancas de papel. Com nosso pincel, colocamos nelas as cores que desejarmos. Não importa se o modelo que está no quadro à nossa frente é uma pintura de um horizonte em azul claro e laranja fosco. O que importa, na verdade, é a nossa vontade. Ela governa o “como” da arte.
Falar também é um tipo de arte. Comunicar-se é uma expressão, tanto estética quanto teórica. E diante da arte, temos sempre dois caminhos a tomar. Existe jeito certo e jeito errado de fazer arte? Ou a arte é o que eu quero que seja? Indo direito ao ponto e sem analogias: existe jeito certo de usar as palavras? Existe um método?
Mais, existe um significado objetivo para elas que me faça ter que ordená-las com clareza ao meu interlocutor ou posso ser como o mais famoso ovo antropomórfico Humpty Dumpty e fazer com que as palavras signifiquem exatamente aquilo que queremos que elas signifiquem?[1] Se não resolvermos essa questão primeiro, toda especulação sobre a necessidade de diálogo tornar-se-á mero flatus vocis[2].
Santo Agostinho (354-430 d.C.) em De Magistro[3], argumentava com seu filho Adeodato que palavras são sinais. O ser humano busca captar, na mente, a essência e a natureza de algo e expressá-la pela palavra falada. Portanto, a função da linguagem é harmonizar a natureza de uma coisa com a expressão, que é sinal dessa mesma coisa.
O termo “Deus”, e.g., deve sinalizar exatamente aquilo que Deus é. Como nosso processo de conhecimento das coisas é imperfeito, as palavras podem ser usadas de maneiras equivocadas, mas sua função é ser um sinal exato da coisa sinalizada. Digamos que o diálogo — a “guerra” de sinais entre duas ou mais pessoas — tem como objetivo ordenar de forma exata um pensamento a respeito de uma coisa.
Em um processo de conhecimento e expressão realizado entre duas pessoas, é natural que existam equívocos lógicos, falhas técnicas de linguagem, conflitos por sentido, refutações, erros grosseiros e algumas provocações desnecessárias. No entanto, só entra em diálogo quem acredita ser possível por meio deste recurso chegar a um consenso objetivo sobre o significado de uma coisa.
Como escreveu C. S. Lewis em Mere Christianity referindo-se ao objetivo da discussão: “A intenção da discussão é mostrar que o outro está errado. Não haveria sentido em demonstrá-lo se você e ele não tivessem algum tipo de consenso sobre o que é certo e o que é errado [...]”[4]. Portanto, o diálogo, o debate, a discussão e a retórica ocorrem sempre dentro de uma atmosfera de pressuposições básicas, como: possibilidade do conhecimento, objetividade da verdade e o valor da argumentação.
Por isso, se acreditamos — como argumentei no início do texto — que palavras podem ser usadas para simbolizar qualquer coisa que desejamos e que a linguagem é mera construção social, subjetiva e relativa, não faz o menor sentido dialogar. Diálogo não é acomodação da realidade à nossa vontade nem mesmo à vontade alheia por medo de divergência.
Essa concepção de diálogo como alguém que cede “[...] diante da palavra de outrem sem lhe opor algo sólido por temer fazer inimigos”[5] está totalmente errada, e é, de fato, o tipo de diálogo mais destruidor ao conhecimento.
De uma perspectiva bíblica da ética do diálogo, é “[...] certo agradar as pessoas na medida em que a Bíblia ordena que você agrade”[6]. Todavia, infelizmente é ainda é comum ver exageros ao encontrar pessoas que acreditam que diálogo nada mais é que “[...] uma conversa acolhedora e não crítica, muitas vezes tendendo a uma agradável, mas injustificada assimilação de ideias.”[7]
Dentro do contexto de relação entre fé e ciência, isso ainda se torna pior. Qualquer tentativa dos cientistas de argumentarem contra alguma doutrina religiosa é abafada com ostracismo eclesiástico. Por outro lado, muitos cristãos intelectuais quando expõem algumas falhas de raciocínio científico são tratados com esnobismo ou repreensão. Qual o caminho para o verdadeiro e proveitoso diálogo?
Bom, já descrevi acima alguns pressupostos básicos e necessários, como crença na possibilidade do conhecimento, verdade objetiva e importância da argumentação logicamente ordenada. No entanto, todos esses pressupostos carecem daquilo que muitos têm chamado de “virtude epistêmica", i.e., a capacidade de ser reverente e sério em considerar a validade e importância dos argumentos de seu oponente, tentando identificar seus pontos fortes e fracos, e a humildade em desejar estar aberto para aprender e reconhecer seus próprios limites e vulnerabilidades. Certamente, o diálogo entre religião e ciência nestes termos pode ser muito mais proveitoso.
[1] CARROLL, Lewis. Through the Looking-Glass and What Alice Found There, 1871.
[2] Do latim “pura emissão fonética”, i.e. sem sentido prático e real.
[3] Os fundamentos da teoria do conhecimento de Santo Agostinho aparecem na obra De Magistro, publicada em 388 d.C. como um tratado pedagógico — na forma de colóquio — pelo qual o pai Aurélio Agostinho, aclara a seu filho Adeodato.
[4] LEWIS, C. S. Cristianismo Puro e Simples. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009. p. 6.
[5] Famille chrétienne, n. 981, 31 octobre 1996.
[6] PRIOLO, Lou. Pleasing People - How Not to Be an “Approval Junkie”.
[7] MCGRATH, Alister. Ciência e religião: fundamentos para o diálogo. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2020. p. 19.