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O que é fé: a antropologia de Dooyeweerd


Por: Fernando Razente
Data: 18/10/2021
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“Religião é o impulso inato do eu humano para direcionar-se rumo à verdadeira, ou uma simulada, origem absoluta de toda diversidade temporal do sentido.” —  Herman Dooyeweerd 

Jeanette Winterson, escritora britânica pós-modernista, escreveu certa vez: "Não podemos simplesmente comer, dormir, caçar e nos reproduzir — somos criaturas que buscam significado."[1] O teólogo brasileiro Hermisten Maia, também declarou: “O homem não deseja apenas participar do espetáculo da vida, mas também entender seus processos, compreendendo a natureza de seus atores.”[2] Estes dois textos nos ensinam que existe algo na natureza humana   não acidental, nem cultural  que anseia por mais do que simplesmente funcionar bem biologicamente. O que é esse impulso por sentido, propósito e significado, comum a toda a raça humana?

Antes de respondermos a essa questão, é preciso refutar o vício dos etnólogos que baseados em diferenças sociaiscravam a tese de que não existe uma experiência que transcende o ser humano e que está presente em toda sociedade. Ou seja, que tudo é relativo a época, cultura ou etnia. Ora, basta reunir os principais textos religiosos e morais, desde as civilizações mesopotâmicas até os dias de hoje[3] para perceber mais semelhanças do que diferenças entre as sociedades humanas.

Todas acreditam em algo; e creem no sentido mais básico e primordial do termo.[4] Por isso, a fé como impulso inato em busca do transcendente é parte ontológica do ser humano e não pode ser deixada de lado em nenhuma situação da experiência, nem em seu cotidiano e nem na sua atividade intelectual e científica.

Estou defendendo que a fé é uma crença primordial de todos os processos de experiência ordinária e conhecimento subsequentes, como parte da natureza humana. Contudo, como explicar essa realidade? Uma visão de mundo naturalista simplesmente não é capaz de nos dar essas respostas. Como escreveu Alister McGrath, “Se aceitarmos uma visão de mundo naturalista, parece que não podemos encontrar nenhuma justificativa para nossas crenças fundamentais sobre significado e valores a partir da natureza do mundo.”[5] O filósofo espanhol José Ortega y Gasset (1883-1955) dizia que os seres humanos precisam de mais do que uma descrição parcial da realidade que a ciência oferece.[6]

Em outras palavras, a partir da ótica das ciências naturais (e até mesmo das existenciais e sociais) não somos capazes de obter a resposta sobre o sentido da vida. Essa impossibilidade não diz que a ciência falhou, mas apenas que chegou em seu limite. Isso nos ensina que estamos lidando com algo de natureza transcendental mesmo na natureza imanente do ser humano. Temos que descartar o naturalismo e admitir que a única explicação plausível que pode fornecer uma compreensão mais satisfatória dessa experiência universal da humanidade é a visão bíblica e cristã do ser humano.Uma antropologia bíblica se encaixa com nossa experiência em busca de sentido.

Um dos filósofos cristãos que desenvolveu uma antropologia bíblica — especialmente a ontologia do ser e sua relação com a experiência religiosa foi o holandês calvinista Herman Dooyeweerd (1894-1977). Para Dooyeweerd, a fé como aspecto da ontologia do ser e não como dom salvífico de Deus é uma expressão natural de uma propriedade inata do indivíduo, e essa propriedade caracteriza-se pelo impulso em busca de sentido e/ou significado.

Esse impulso não concorre com o aspecto racional da vida. Antes, reconhecendo as funções da realidade imanente, não encontra satisfação às suas indagações mais básicas. Daí a necessidade de transcender: “Fé não tem relação com fugir da razão humana; ela diz respeito a reconhecer e transcender os limites da razão, em vez de permanecer preso na austera ‘gaiola de ferro’ do racionalismo (para usar o famoso termo de Max Weber).”[7], escreveu McGrath. Dooyeweerd produziu um sistema filosófico denominado de “filosofia reformacional” ou “filosofia da ideia cosmonômica”, cujo núcleo do pensamento está na rejeição do absolutismo da razão, isto é, de que a razão seja a fonte última da verdade sobre todos os demais aspectos da vida (inclusive a religião).

Dooyeweerd, baseado em uma tradição de pensamento bíblico-calvinista, defendia que o centro da experiência humana não é a razão, mas o coração e, que a expressão da realidade desse centro é a experiência humana em busca de sentido através da fé. Essa ideia é uma herança de Dooyeweerd da tradição calvinista que tem origem em João Calvino (1509-1564), que realizou uma junção entre pressupostos bíblicos e a questão “o que é o homem?”. Calvino chegou a conclusão de que o homem trata-se de um ser essencialmente religioso, recipiente da “semente da religião”[8] que está em seu coração.

Se o homem é uma criatura de Deus, faz parte do centro de sua natureza direcionar-se para sua origem transcendente que é Deus[9]. Depois de Calvino, Abraham Kuyper (1837-1920), um estadista e teólogo calvinista holandês, fundador da Universidade Livre de Amsterdã, enfrentará o cientificismo de sua época que tentou colocar a fé como uma categoria arbitrária do ser humano, como algo que a espécie humana pode escolher ter ou não ter.

Kuyper, embebido da tradição de Calvino, vai defender que a religião (ou a fé comum), trata-se de uma realidade inata, uma propriedade característica do ser humano, apesar da intensa luta do ser humano para negar a realidade de pressuposições religiosas em seu pensamento[10]. Herman Dooyeweerd, que foi professor da mesma Livre de Amsterdã[11], cita em um dos seus livros que Kuyper foi provavelmente o primeiro a recuperar, na modernidade, a concepção bíblica de que a fé é ontologicamente real no ser humano[12], não uma adição externa e arbitrária.

Dooyeweerd, em seu tempo, teve que lidar com a secularização da ciência e com as críticas à fé cristã como algo irracional. Vendo o homem como criatura religiosa e para demonstrar a presença da fé em todo tipo de pensamento científico ou teórico, Dooyeweerd começou a demonstrar que existe uma diferença básica entre experiência ordinária ou ingênua, onde concebemos as coisas de forma integral e, a experiência teórica, onde recortamos um aspecto da realidade para nos aprofundarmos nele.

Assim, para Dooyeweerd todo pensamento teórico estava marcado com pressuposições religiosas da experiência ordinária. A reflexão teórica (ou científica) estava subordinada às crenças básicas sobre sentido e propósito, especialmente. Essas crenças estão localizadas na experiência pré-teórica e condicionam a atitude teórica de qualquer indivíduo em seu empreendimento intelectual. Dooyeweerd escreveu: "Nunca houve uma ciência que não fosse fundada em pressuposições de natureza religiosa, nem jamais haverá."

Desta forma, Dooyeweerd foi capaz de demonstrar a natureza fundamentalmente religiosa do homem e como o impulso religioso do coração humano determina todos as suas ações, inclusive a prática científica. As pressuposições religiosas no pensamento teórico refletem o caráter inato da fé no homem. Esse é o distintivo da antropologia bíblica de Dooyeweerd. Na visão do filósofo, o homem é homo religiosus em sua essência.

 



[1]WINTERSON, Jeanette. Por que ser feliz quando se pode ser normal? Rio de Janeiro: Record, 2014. p. 70.

[2]COSTA, Hermisten Maia Pereira da. João Calvino: 500 anos. São Paulo: Cultura Cristã, 2009. p. 193.

[3]Cf. apêndice de “A Abolição do Homem” e “Cristianismo Puro e Simples”, escritos por C. S. Lewis. Também considero relevante a leitura de “100 textos da História Antiga”, de Jaime Pinsky. 

[4]ANGLADA, Paulo. Soli Deo Glória. p. 20.

[5]MCGRATH, Alister. C. S. Lewis, Richard Dawkins e o sentido da vida. p. 13.

[6]“A verdade científica é caracterizada pela precisão e certeza de suas previsões. Mas a ciência alcança essas qualidades admiráveis à custa de permanecer no nível das preocupações secundárias, deixando intocadas as questões últimas e decisivas.” (MCGRATH, Alister. Ciência e Religião: fundamentos para o diálogo, p. 17.)

[7] Ibidem, p. 44.

[8]“Portanto, visto que desde o princípio do mundo não há região, nem cidade, nem mesmo casa alguma que não tenha nada de religião, nesse fato nós temos uma confissão tácita de que há um senso de Divindade gravado no coração de todos os seres humanos.” (CALVINO, João. As Institutas. São Paulo: Volume 1, Editora Cultura Cristã, 2006. p. 58.)

[9]Existe aqui uma aproximação de Calvino com a compreensão de Santo Agostinho sobre o que é o homem. Agostinho escreveu: “Fizeste-nos para Ti e inquieto está o nosso coração enquanto não repousa em Ti.” (Santo Agostinho, As Confissões, I, 1,1). O homem, para Agostinho, foi feito por Deus e seu sentido está em Deus. O coração é o núcleo dessa experiência religiosa de todo ser humano.

[10]KUYPER, Abraham. Calvinismo. São Paulo: Cultura Cristã, 2014.

[11]“[...] em 1912 ele ingressou na Universidade Livre de Amsterdã a qual fora fundada por Kuyper em 1880, no curso de direito. [...] Em 1926, aos 32 anos, ele aceita o cargo de professor do departamento de direito da Universidade Livre de Amsterdã”. (BALENA, Leonardo Queiroz. Filosofia e Teologia Reformada: Perspectivas Cristãs à luz do Pensamento e Vida de Herman Dooyeweerd. São Paulo: Fonte Editorial, 2020)

[12]"Abraham Kuyper, cuja inspiradora liderança orientou essa nova reflexão, assinalava que o grande movimento da Reforma não poderia continuar restrito à reforma da igreja e da teologia. Seu ponto de partida bíblico tocava a raiz religiosa da totalidade da vida temporal e tinha de reivindicar sua validade em todos seus setores." (from "Filosofia cristã e o sentido da história" by Herman Dooyeweerd. Felipe Sabino de Araújo Neto, Fabrício Tavares de Moraes)

Fernando Razente

Amante de História, atuante com comunicação e mídia, leitor voraz e escritor de artigos de opinião e matérias jornalísticas.


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