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Sérgio Rubens Sossélla: poesia e vida intelectual


Por: Dr. Felipe Figueira
Data: 19/05/2023
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Especial para o JN

Em 2003, eu tomei contato com a obra de um poeta de Paranavaí, Paraná, que viria a se tornar uma fonte incessante de inspiração. Esse poeta se chama Sérgio Rubens Sossélla, que nasceu em Curitiba, em 27 de fevereiro de 1942, e faleceu em Paranavaí, em 18 de novembro de 2003. Infelizmente, apesar de eu ter conhecido a obra do escritor enquanto ele era vivo, não foi possível conhecê-lo pessoalmente.

“eu nasci em curitiba.

eu não sou de curitiba.”

“é pequeno o mundo só quando coincide.

caso contrário, quantas galáxias.”

O poeta em sua escrivaninha. Fonte: acervo da família.

Sossélla foi um magistrado paranaense que mantinha uma dupla vida intelectual: dedicava-se à vida jurídica e à de escritor. Com o passar dos anos, em especial após a aposentadoria, a vida de escritor lhe ocupou toda a atenção. É interessante ouvir da família e dos amigos que o poeta pouco saía de casa, sendo em que um determinado ano ele saiu apenas uma vez, tamanha a imersão em sua literatura.

“eu me escondi por inteiro nos meus poemas

para poder exibir a vocês os meus pedaços”

“os mortos falam mais

depois que morrem

o silêncio deles

é mais do que mortal”

Foi no ano de 2010 que eu de fato me aproximei da família do escritor, particularmente da esposa, Rosa Maria, e do filho, Sérgio Augusto Cardoso Sossélla. Desde então, vou à casa da família ao menos uma vez por ano, para que eu possa sentir de modo mais intenso a presença do poeta. A quem pensa que alguém morre só porque deixou de ser visto entre os mortais, é porque ainda não percebeu que certas pessoas têm o raro poder de serem sentidas com o passar do tempo.

Placa em homenagem a Sossélla, na praça do Teatro Municipal de Paranavaí, com versos do poema “não norarei amanhã”, classificado no 20º FEMUP. Fotografia de Eduardo Hermsdorff Dias e Rafaela Yoneyama.

Há casos e mais casos curiosos sobre Sossélla. Ele foi companheiro de Paulo Leminski, sendo que os dois se tornaram irmãos, seja por causa da amizade nutrida, seja por causa do amor à escrita. Ele foi amigo da escritora Helena Kolody e do cineasta Sylvio Back, e sobre Sossélla escreveram até Carlos Drummond de Andrade e Décio Pignatari. Logo se percebe que Sossélla, apesar da sua lendária reclusão, de modo algum se isolou do mundo: a sua solidão era, antes, um estilo de vida que lhe potencializava a criação artística.

         Poucos foram os livros de sua autoria produzidos por editoras de alcance nacional. Entretanto, isso não foi um impeditivo para que o poeta deixasse de publicar - e deixasse de publicar muito. Ele, com a ajuda de sua esposa, publicava tudo artesanalmente: o nome de sua editora particular era Edições Meio-dia. Dessa maneira, ele escreveu e publicou mais de quatrocentos livros, sendo que cada um recebia uma tiragem de trinta a cinquenta exemplares e eram distribuídos a dedo pelo poeta. A quem ler isso, parecerá um caso extremo de sonho e de utopia, mas, a vida intelectual é repleta de sonhos e utopias. Lucros com a escrita é para poucos, mas, nem por isso a qualidade literária cai, o amor à escrita é algo mais poderoso, um “poder obscuro, impulsionador, inesgotável que deseja a si mesmo” (NIETZSCHE, “Segunda consideração intempestiva”, 2003, p. 30).

aqui não é noa-noa

ela nem me procura

aqui não é noa-noa

mas a minha sepultura

(tire o cavalo da chuva

confesso que ainda não morri)

lá os bares não fecham jamais

não deu na globo? não deu na globo?

e as memoráveis cicatrizes bebem no mesmo copo

(quando nasci os ciprestes já se retorciam)

lá os bares não fecham jamais

porque ela pode aparecer e insistir

ao sam que toque uma vez mais

estou me rasgando para o passe de sócrates

cinture (de novo) o cálice com amargo e cinzano doce

estou me rasgando para a maiêutica peripatética

me recuso a sair daqui sem ouvir pelo menos jalousie

cinture o cálice meu amigo cinture o cálice de amargor

aplainei a quilha da embarcação

agora me vou (antes da partilha)

vi e revi esse filme

(o cara morre no curso de um flashback interminável)

sabei-me onde mas me vou

(aqui não é noa-noa)

se ela chegar diga que me fui

para os bares que não fecham jamais”

Ao escrever este texto, tive um privilégio só possível para poucas pessoas: eu o redigi na escrivaninha do poeta, em sua biblioteca, conhecida pelo nome de “Vila Rosa Maria”. Essa biblioteca, de cerca de trezentos metros quadrados, possui um acervo de mais de vinte mil títulos, entre livros, jornais, revistas e filmes, sendo que até hoje, quase 20 anos após a morte do poeta, a família a preserva e vai além: segue comprando os livros dos autores preferidos do escritor, por acreditar que isso é uma forma de perpetuar um legado.

“o livro de jó

amargo sonho de um homem só”

“cacos de telha

o olho direito depreca

o olho esquerdo cumpre

e você dança

coçando chagas

com cacos de telha”

“não fico livre

o livro de jó

li nem sei quantas vezes

não posso ficar livre dele”

Estantes da Vila Rosa Maria. Fotografia tirada por Matheus Bildhauer.

Agora, uma história que não posso deixar de registrar sobre a família de Sossélla, que se soma, de algum modo, aos curiosos casos sobre o escritor: em 2019, eu terminei de escrever um livro em homenagem aos temas prediletos do poeta. Esse livro, que se encontra no prelo, se chama “sossélla sobra silfos”. Ao colocar o ponto final, às dez horas da noite, não pensei duas vezes: fui naquele horário mesmo à casa do poeta. A família, feliz com a novidade, me levou à Vila Rosa Maria e disse: “Escolha um livro de cada do poeta que você ainda não tenha, será um presente.” Resultado dessa generosidade: ganhei cerca de 150 livros.

Sempre que alguém me pergunta o que é ser escritor ou me pede dicas sobre como escrever, eu digo à pessoa que se trata de um trabalho em que todo esforço será pouco, mas que, se a pessoa cair em preciosismos, nada fará. Sossélla era um escritor que trabalhava muito, madrugando em sua biblioteca, perdendo-se entre os livros e ficando horas diante de sua escrivaninha. Uma questão: será que todo o tempo despendido nesse ofício valeu a pena? Certamente o poeta diria que sim, afinal, para o criador, o seu trabalho não tem preço, tem valor. Estudar de madrugada ou durante o dia? Para Sossélla, o tempo se resumia à vida intelectual, e nela se perdia e se encontrava.

Livros, quadros e esculturas na Vila Rosa Maria. Registro autoral.

“à falta de bem

para nomear à penhora

quiseram levar meu silêncio

minha sombra e minha solidão

bens impenhoráveis”

“o dia trabalha para a noite

e o sonho lhe repousa”

“o vazio é tudo

tanto que escrevi e repentinamente me vejo mudo”

Lápide de Sérgio Rubens Sossélla. Fotografia de Eduardo Hermsdorff Dias e Rafaela Yoneyama.

Sossélla cuidava de tudo o que escrevia, da escrita em si à diagramação e à produção do material. A esposa digitava, mas ele corrigia, e, conforme Rosa Maria um dia me confessou, entre risos alegres e risos amarelos, o poeta era extremamente cuidadoso e exigente, sendo que se ela errasse ou esquecesse ou omitisse um poema, ele se chateava e até mesmo a repreendia. Isso pode parecer duro, mas, ao criador, cada linha tem sentido, cada poema tem vida. É raríssimo encontrar um erro na escrita de Sossélla, o que não era sinal de preciosismo, mas de um grande estudioso da língua. O preciosista é aquele que deixa para criar só depois que estiver perfeito - ao contrário, Sossélla sabia que jamais atingiria a perfeição.

Quem ler os livros de Sossélla poderá ser tomado por uma estranheza inicial: boa parte dos seus poemas não recebe pontos e vírgulas, e muitos são os nomes próprios e os inícios de frase em minúsculo. Esse exotismo, contudo, que pode servir de estranhamento, em nada prejudica a fluidez da leitura, o que nos leva a questionar: o que é essencial à linguagem? Garanto que depois de um tempo de aproximação com o estilo do poeta, esse diferente modo de escrita passa a ser compreendido e inclusive valorizado pelo leitor.

“o espelho

esse teatro sem fim”

“eu só penso em publicar, ler e estudar

escrevendo o que vivi, escreverei”

“você mais medita sobre a morte de noite

porque durante o dia se distrai batendo pregos

e imaginando o sonho que vai ser”

Sossélla pode até ser um “ilustre desconhecido”, um belo título que ele provavelmente aprovaria, pois chegou a captar esse sentimento: “melhor assim/ aqui em longs peak ou no meio do mato curto/ integralmente este meu anonimato”; mas, com a força de seus versos, que se aparentam a fósforos, podemos olhar a lua, como se lê em sua lápide, e a nós mesmos, e podemos compreender que a quem tem vida interior a existência ganha mais brilho. Mas, um porém, um brilho repleto de silêncio, sombra e solidão.

 

Recomendação de livros do poeta

Sérgio Rubens Sossélla. A linguagem prometida. Curitiba: Imprensa Oficial do Paraná, 2000.

___________________. A Nova Holanda. Paranavaí: Edições Meio-dia, 1989

___________________. Ao vencedor, as batalhas. Paranavaí, Fundação Cultural de Paranavaí, 1987.

___________________. estudos para um retrato de van gogh. Paranavaí: Edições meio-dia, 1992.

___________________. Sérgio Rubens Sossélla. Série paranaense. Curitiba: Scientia et Labor, 1989.

___________________. Tatuagens de Nathanael. Curitiba. Fundação Cultural, 1981.

 

Recomendação de livro sobre o poeta

Gersonita Elpídio dos Santos. Silêncio, Sombra e Solidão na Poesia de Sérgio Rubens Sossélla. 1. ed. Maringá: Massoni, 2013.

Dr. Felipe Figueira

Felipe Figueira é doutor em Educação e pós-doutor em História. Professor de História e Pedagogia no Instituto Federal do Paraná (IFPR) Campus Paranavaí.


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