São as águas de março fechando o verão
Março de 2021, mês difícil para todos nós, com escassez de vacinas, a pandemia do novo coronavírus não para de bater recordes de mortes. Um dia são duas mil pessoas, outro dia, três mil. São 15 mil mortes semanais. Já são 300 mil mortes por Covid-19, desde 12 de março de 2020. Que tristeza em todo o país. Ainda temos que ouvir e tolerar um palavreado insensível, chulo, mentiroso e de uma incompetência sem tamanha de nossas autoridades, como a do deputado federal Ricardo Barros (PP-PR), líder do governo, que afirmou que " ele vê a pandemia no Brasil ainda numa situação bastante confortável." O Brasil não merece isso. Diante de um cenário como este, de difícil solução, resolvi dar um tempo a tudo isso e a medicina, relaxando um pouco ao ouvir e comentar a música ÁGUAS DE MARÇO, de Tom Jobim. Antonio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim, mais conhecido pelo nome artístico de Tom Jobim (1927-1994), foi compositor, cantor, pianista, violonista, arranjador, maestro brasileiro, considerado um dos criadores da bossa nova e está entre os maiores nomes da música nacional. Carioca da gema, Tom Jobim, tinha um sítio em Poço Fundo, região serrana, há 40 kms do município de Petrópolis (RJ), onde resolveu construir uma bela casa de veraneio, muito bem projetada. Foi uma época em que ele se sentia muito triste e sozinho, apesar da presença de sua esposa Ana Tereza, por volta de 1970 a 1972. Na fossa, não se alimentava bem, comia pão com mortadela, banana, frutas, legumes e passava o dia vendo a construção da casa, mas muitas vezes tendo que parar por algum problema, como falta de material ou as chuvas intensas que caiam pois já era março. Com tempo de sobra, Jobim pegou o seu violão, papel de embrulho que vinha o pão, uma caneta e começou rabiscar uma melodia, com o nome de Águas de Março. Escrevia uma coisa, não gostava, riscava, jogava fora e assim por diante. Mas como o tempo, foi criando palavras, frases, como "chuva, chovendo muito, enxurradas trazendo, pau, pedra, toco, abrindo caminho, a madeira, é peroba no campo, é o nó na madeira, caingá candeia, matinta pereira, o vento, a ribanceira, é um pedaço de pão, uma garrafa de cana, no rosto um desgosto por estar sozinho, é uma cobra, é João, é José, é um prego, é um estepe, é um espinho na mão, um corte no pé, é a lama, é a lama, é o carro enguiçado, é um sapo, é uma rã, é um rio, é uma ponte, é um anzol, é um peixe, é um pingo pingando, é a luz da manha, é o dia chegando, é a lenha, é o fim da picada, é o tijolo chegando, é o projeto da casa, é o corpo na cama, é a noite, é a morte, é uma ave no céu, é uma ave no chão, é o queira e não queira, é o mistério profundo , é a viga, é o vão, é a festa da cumeeira," e tantos outros pontos e contrapontos que o autor foi colocando na melodia. É o dia a dia de Jobim falando de sua vida, de sua tristeza, melancolia, lá no sítio, cheio de caingá, candeia, matinta pereira. Caingá, é o nome de uma árvore. Candeia, é um arbusto e também uma peça de iluminação abastecida a óleo ou gás. Matinta Pereira, é o nome de um pássaro misterioso, agourento, cujo canto mais parece um assobio que nunca se sabe de onde vem. É uma crença do Norte brasileiro. Seria uma bruxa? Cumeeira, é a parte mais alta do telhado e geralmente se faz uma festa quando se termina a cobertura. Na alegria falava em dia, sol, pássaro na mão. Na tristeza, noite, morte e assim foi escrevendo. Conforme podemos observar a melodia ÁGUAS DE MARÇO, composta por acaso, é como uma passagem da vida cotidiana, como um motocontínuo, sua inevitável progressão até a morte, como as chuvas de março anunciando o final do verão, a chegada do outono, aqui no Hemisfério Sul. A água, é realmente uma promessa de vida, símbolo da renovação. Por isso, ao encerrar a melodia ele disse: "são as águas de março fechando o verão, é a promessa de vida no teu coração." Em 1972, Tom Jobim reuniu os amigos num bar, com o seu violão, tocou e cantou Águas de Março. Entre os presentes estava seu grande amigo, outro monstro sagrado da música popular brasileira: Vinícius de Moraes ( 1913-1980). A música, foi muito elogiada mas não fez tanto sucesso como era de se esperar. Um dia Vinícius chamou Tom Jobim, que em parceria já haviam escritos muitas músicas de sucessos, entre elas, GAROTA DE IPANEMA, disse para o amigo Tom: "a melodia águas de março é muito bonita, mas precisa de uma boa interpretação, alguém que cante, balance, tenha expressividade, vitalidade e traga emoção no canto e na alma da música." Jobim perguntou: quem Vinicius? Ele respondeu, a pimentinha Elis Regina (1945-1982), reconhecida por todos como a melhor intérprete musical do país. Ela canta e você Jobim, faz os contrapontos da música. Jobim chamou Elis e foram para o estúdio gravar ÁGUAS DE MARÇO, lançado mundialmente em 1974. Hoje, a música tem inúmeras interpretações por cantores famosos como Cher, Madonna, Frank Sinatra, Mariza, Tim Maia, Ella Fitzgerald, Stacey Kent em vários idiomas. Já em 2000 -2001, cerca de 214 jornalistas, diversas personalidades relacionadas a cultura elegeram ÀGUAS DE MARÇO como a melhor música brasileira de todos os tempos. Ricas em detalhes e uma bela canção, a música tornou-se um clássico da música popular brasileira, ficando como lembrança do sítio de Poço Fundo, destruído pelas enxurradas das intensas chuvas de março naquela região serrana de Petrópolis. Vale a pena ouvir de novo!