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“Eu vim da Bahia mas algum dia eu volto pra lá”: reflexões a partir de uma breve imersão cultural (parte 1)


Por: Josimar Priori
Data: 19/03/2024
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“Eu vim
Eu vim da Bahia cantar
Eu vim da Bahia contar
Tanta coisa bonita que tem na Bahia que é meu lugar
Tem meu chão, tem meu céu, tem meu mar
A Bahia que vive pra dizer
Como é que faz pra viver
Onde a gente não tem pra comer
Mas de fome não morre
Porque na Bahia tem mãe Iemanjá
De outro lado o Senhor do Bonfim
Que ajuda o baiano a viver
Pra cantar, pra sambar pra valer
Pra morrer de alegria
Na festa de rua, no samba de roda
Na noite de lua, no canto do mar
Eu vim da Bahia
Mas eu volto pra lá
Eu vim da Bahia mas algum dia eu volto pra lá” (Gilberto Gil)

Foto: Ilustrativa/Web

Durante o início do mês de janeiro minha família e eu estivemos na cidade de Salvador - BA, realizando o que considero como uma imersão cultural, ainda que breve, na primeira capital do Brasil. O objetivo deste artigo é descrever parte das atividades que participamos, lugares visitados, além de tecer algumas reflexões produzidas a partir do mergulho no Brasil que encontramos nesta cidade tão emblemática para a nossa história. Este texto será dividido em várias seções, as quais serão publicadas em edições sucessivas deste jornal.

Introdução: Em Busca De Uma Ancestralidade Apagada

Eu fui pra Bahia. Nunca tinha ido, mas, como todo brasileiro, a imagem desse estado do Brasil sempre esteve presente em minha vida. Livros escolares, programas de televisão, narrativas dentro de casa. Meu avô e minha avó maternos eram baianos. Sempre soube disso, mas esse vínculo sanguíneo nunca significou praticamente nada para mim. Não havia nada visível da Bahia em minha trajetória a não ser esse distante fato de que os pais de minha mãe vieram de lá. A narrativa italiana sempre se impôs quase que exclusivamente, apagando todas as demais histórias das quais eu sou um resultado. A presença baiana esmaeceu ainda mais com a morte de meus avós. A avó, Adélia, partiu quando minha mãe era uma menina de apenas 11 anos. O avô, José, não tardou muito. Eu devia ter uns três ou quatro anos de idade quando ele faleceu. Tenho algumas lembranças dele. A imagem mais forte é a de um ato violento cometido contra um dos filhos dele mais ou menos da mesma idade que eu.

Minha mãe, a Rose Mary, nunca foi de contar histórias da família dos pais dela. Talvez ela não tenha recebido estas histórias para contar. Possivelmente por razões materiais e educacionais. Aparentemente, a sobrevivência ocupava vasto espaço na vida dessa família. Ela não teve contato com avós, tios e outros ancestrais. Nada sabe sobre eles. As imagens passadas a mim por ela são bastante genéricas, geralmente referências a alimentos consumidos em sua casa materna como pirão de feijão ou farinha. Eventualmente conta algum costume do meu avô como dar de presente para visitantes utensílios que tinha em casa.  

Aos onze anos, ao perder a mãe, as condições culturais de caldo patriarcal e a pobreza (o pai era negligente e com poucos recursos financeiros e socioeducacionais) impuseram a ela a obrigação de cuidar dos irmãos mais novos. Ela é a segunda mais velha. A Rosângela, por volta dos 14 anos, encontrou no casamento uma alternativa àquela vida duríssima. Coube a minha mãe carregar nos ombros a responsabilidade que uma menina não podia carregar. Antônio, José, Luzia, Rafael e Rita, esta uma bebê de colo, ficaram sob seus cuidados. Minha avó ainda pariu outros dois filhos, ambos perdidos na primeira infância.

Eu não sei o peso que teve na vida dela o período após a perda da mãe dela, tampouco como foi a vida dela antes dessa tragédia. Minha mãe é durona e nunca falou muito sobre as dores dela. Mas sempre comentou sobre as brutalidades do meu avô. Do relato dela, emerge um típico homem do patriarcado, violento, com uso abusivo de bebida alcoólica, infiel em seu casamento e bruto com os filhos. Não sei a responsabilidade da violência do meu avô na morte da minha avó. Não sei de quais maneiras ele a agredia e sequer se fazia questão de cuidar da saúde dela. O fato é que ela se foi antes dos trinta anos e que muito pouco me foi passado sobre ela. Não muito depois da morte de minha avó, meu avô teve mais dois filhos em outro relacionamento: Wagner um pouco mais velho que eu, Robert um pouco menos.

 Foi nesse ambiente que aos catorze anos minha mãe iniciou um relacionamento com o meu pai e aos dezesseis eles se casaram fugidos. Ouvi-os contarem que meu avô materno queria promover uma festa de casamento, mas como ele não tinha recursos para tanto, eles optaram pela fuga para efetivarem o casamento. Com as núpcias, minha mãe foi absorvida quase que totalmente pela família do meu pai. Após um pequeno período vivendo sozinhos, meus pais foram morar com meus avós paternos e assim seguiu-se até a morte deles. Enquanto minha mãe ajudava nos cuidados com eles, já idosos, eles, por sua vez, cuidavam de mim e de meu irmão para que minha mãe pudesse trabalhar como costureira em uma fábrica.

A família do meu pai não era homogeneamente de origem italiana, mas foi esta a narrativa racial que se impôs. Sei que origem de minha avó paterna teve a participação, entre outros, de portugueses e negros. Mas sabe-se pouco mais que mais que isso. Do meu avô paterno, por outro lado, sabe-se mais. Os pais dele eram italianos que vieram jovens para o Brasil na década de 1920 e aqui estabeleceram uma família. Não enriqueceram, mas mantiveram os filhos, netos, bisnetos, trinetos etc., conectados. Manter a conexão entre os membros da família já é um projeto razoavelmente bem sucedido quando se compara com a diáspora sofrida por pobres, negros e indígenas brasileiros.

Minha mãe passou a fazer parte desta tradição. Seguiu a família do meu pai aonde ela foi. Elementos de gênero e raça estruturam a trajetória dela, como de todos nós. A mulher que é privada da própria família para seguir o marido. A troca do sobrenome dela pelo do esposo representa isso. A filha de nordestinos, de pele parda, incorporada pela família de brancos. Não tenho conhecimento de ter havido racismo expresso, mas havia comentários sobre sua pele ligeiramente escura e tons de pele em geral.

De todo modo, a história dela foi encolhida como determinava tanto o ideário de embranquecimento populacional quanto o patriarcal (incorporação da mulher à família do marido). Enquanto o mito de origem ítalo-europeia foi incensado, reverenciado, adorado e ostentado, a baianidade, a negritude, a indianidade foi descartada, soterrada como o pensamento racial entendia que se devia fazer com as tidas raças inferiores (sobre o assunto, recomendo o livro Rediscutindo a Mestiçagem no Brasil, de Kabengele Munanga). A baianidade de minha mãe se perdeu e só aparece aqui ou ali como um lapso de um relâmpago.

Materialmente falando, isso se expressa na verdadeira diáspora que a família dela foi submetida após a morte de meu avô. A história até aqui contada se passou na fronteira entre sete quedas (MS) e Corpus Christi, no Paraguai. Foi lá que meus avós maternos e paternos se estabeleceram e viveram por quase duas décadas. As duas famílias, embora vindas do Paraná, lá se conheceram e se entrelaçaram. Meus avós maternos em algum momento dos anos 1970 vieram para o Paraná. Moraram em Altônia e depois emigraram para a zona rural do município paraguaio de Corpus Christi. Meus avós maternos viviam no eixo Paiçandu, Maringá e Nova Esperança. Também se mudaram para a zona rural da mesma localidade na mesma época.

 Em janeiro de 1993, meus avôs paternos, meus pais, meu irmão e eu nos mudamos para o município de Sarandi-Pr. Eles estavam voltando para o estado de onde partiram. Acontece que para a minha mãe isso significou a rotura dos laços já frágeis com os seus irmãos. A essa época, com 25 anos, ela já era órfã de pai e mãe.  Durante anos e anos quase nada se soube sobre o paradeiro de parte deles. Sabia-se apenas que Rita estava com os seus padrinhos, que os dois pequenos do novo relacionamento estavam com a mãe deles e que Luzia permaneceu no Paraguai. Zezinho, Toinho e Sanza – apelidos de família para José, Antônio e Rosângela – se estabeleceram em Curitiba. Estes são os únicos com os quais sempre foi possível manter contato. Cartas, visitas eventuais e ligações quando este meio de comunicação tornou-se disponível sempre existiram. Mais recentemente o telefone foi substituído pela troca de vídeos e áudios por meio de aplicativos de mensagens pela internet.

Rafael, à época adolescente, veio morar conosco logo depois que chegamos a Sarandi. Mas não ficou por muito tempo e mudou-se para Curitiba, praticamente rompendo os laços com a família até sua morte precoce no ano de 2020, alguns dias antes da pandemia de Covid 19 explodir no país. Sua causa mortis foi pneumonia, mas ele sofria também de sérios problemas no âmbito da saúde mental. Rita foi no mínimo uma criança pouco cuidada e pouco amada na casa dos padrinhos que ficaram com sua guarda. Sobre Luzia só se sabia que estava no Paraguai. Dos meninos, durante a maior parte do tempo quase nada se sabia, apenas um boato de Wagner virou jogador de futebol. Estas eram notícias que apareciam de um ou outro conhecido que teve algum contato com algum deles.  

As novas redes sociais reconectou os irmãos. Recriou, talvez, laços familiares sanguíneos para a minha mãe. Não sei quais as sequelas ficou para eles. Mas tanto minha mãe como muitos dos meus tios enfrentam problemas de saúde. Sofrimento mental e problemas ósseos são comuns na família, possivelmente oriundos da dureza da vida, de possível alimentação deficitária e de pouca assistência médica. Os níveis de escolaridade deles são baixíssimos e as profissões são braçais. Rita nem possui documentação plena em nenhum dos países (Brasil ou Paraguai). Não se sabe de sua certidão de nascimento brasileira e no Paraguai ela não tem todos os documentos. Robert foi assassinado na fronteira na cidade de Corpus Christi no ano de 2016.

Impressiona essa história de descendentes de baianos e toda a violência social impressa nela. Em larga maneira, isso expressa a história colonial deste estado, o berço da invasão, da conquista, do etnocídio indígena e africano, da escravidão e dos riquíssimos ciclos econômicos brasileiros. A história nos conta que negros e indígenas eram proibidos de falarem seus idiomas maternos e praticarem suas religiões. Também eram separados de suas etnias e mesmo famílias. Ao mesmo tempo, serviam como mão de obra para o trabalho braçal, mas também como ventre povoador deste país. Foi o abuso sexual, o estupro, que gerou o povo brasileiro. O processo de hierarquização social, racial e de gênero feito inicialmente de maneira intencional calcificou-se na estrutura social de maneira a se reconstituir sem que houvesse uma determinação expressa para cada caso.

A minha inserção nessa história tornou-se agora mais clara depois de eu passar sete dias na cidade de Salvador, capital da Bahia e primeira capital do Brasil. Nestas terras este passado que se mostra no presente foi concebido. Ali foi posto em movimento toda a brutalidade, toda a violência e toda a selvageria da invasão e colonização deste país. Nesse processo, a contradição social explode na nossa cara e dela emerge um povo que foi profundamente explorado e oprimido, mas que nunca se silenciou ante tanta barbárie e criou tantas e impressionantes formas de resistência.

Conhecer in loco esta cidade, contemplar as belezas naturais e tomar contato com alguns lampejos de sua história, mas, sobretudo, inebriar-me do povo baiano, representou uma verdadeira epifania para mim. Este contato forjou em mim uma revisão muito ampla de minha trajetória de vida, especialmente nas áreas familiar e acadêmica. Voltar para a Bahia, voltar para este lugar que eu nunca tinha ido, mas que já estive lá como resultado da história deste país e como neto de meus avós significou reconectar-me com uma memória esquecida, descobrir uma ancestralidade desconhecida. O que eu tenho desse povo? Que baianidade eu posso descobrir em mim?

Um pouco disso se dá pela inserção da tradição familiar de minha mãe à italianidade celebrada em minha família e no Brasil como um todo. Minha mãe ocupa lugar central nisso. O fato de conhecer a terra dos pais dela aparece como se um pouquinho mais da própria história dela tivesse sido desenterrada, de modo que sua origem se torna um pouco mais precisa. Minha mãe é agora um pouco menos uma pessoa sem ancestralidade. Eu próprio consigo me ver um pouco mais conectado com isso. Agora consigo um pouco mais me ver não apenas como um neto de italianos, mas também como um neto de baianos.

Compreender um pouco mais essa baianidade passa necessariamente por experiênciar essa identidade. Assim, minha imersão em Salvador que desde o início se pretendia política, mas tinha no centro o turismo, se tornou muito mais que isso, terminando como uma profunda experiência sensorial, social, cultural, histórica e intelectual.

Falemos um pouco sobre este último ponto. O Brasil que eu vi em Salvador não é o Brasil dos livros lidos por mim. Não pretendo generalizar a ponto de afirmar que o que estudei até hoje representa o conjunto do pensamento social brasileiro, mas certamente essa porção que foi por mim acessada praticamente ignora a brasilidade baiana. A primeira capital, o centro da colônia, batalhas importantes para a independência e toda a profusão de intelectuais, artistas, músicos e expressões culturais produzidas por esse povo, assim como o próprio modo de viver dele, me foram obscuros em anos de estudo.

Gilberto Freyre fala desde o nordeste, sua obra tem intersecções com a Bahia, mas o lugar em que ele se encontra é a casa-grande pernambucana. Os demais pensadores brasileiros estão no sudeste, mais especificamente em São Paulo, com algumas concessões para o Rio de Janeiro e um pouco menos para Minas Gerais. O fato é que o centro do pensamento brasileiro que eu estudei é paulista. Trata-se do projeto uspiano de formação de elites intelectuais que se impõe. Em termos de representações sociais, Salvador, Bahia, o nordeste representa o passado. O centro da vida social brasileira é situado em São Paulo, a cidade que nunca dorme.

Meus sete dias nesta cidade foram divididos entre visita a centros histórico-culturais e praias. As praias são lindíssimas. Mas o que mais me impactou foi a história e a cultura local. Entremos agora em alguns aspectos dessa experiência.

Josimar Priori


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