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“Diário de Escola”, de Daniel Pennac


Por: Dr. Felipe Figueira
Data: 29/05/2024
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  1. O amor

 

- Ande, você, que sabe tudo sem nada ter aprendido, qual é o meio de ensinar sem estar preparado para isso? Existe um método?

- É o que não falta, só dá nisso, métodos! Vocês passam o tempo a se refugiar nos métodos, enquanto, no fundo, sabem muito bem que o método não basta. Falta-lhe algo.

- O que é que lhe falta?

- Não posso dizer.

- Por quê?

- É um palavrão.

- Pior do que “empatia”?

- Sem comparação. Uma palavra que você não pode pronunciar numa escola, num liceu, numa faculdade, ou em nada que se assemelhe a isso.

- A saber?

- Não, verdade, não posso...

- Ande, vá!

- Não posso, estou lhe dizendo! Se você soltar esta palavra falando de instrução, vai ser linchado.

- ...

- ...

- ...

- O amor. (PENNAC, 2008, p. 234).

       

O trecho acima é uma conversa entre o professor Daniel Pennac e o Daniel Pennac aluno, lerdo, que tantas vezes foi deixado de lado por ser, em suas próprias palavras, um “lerdo”. Porém, apesar desse tétrico rótulo, Pennac tornou-se um professor “de sucesso”, autor de diversos livros que se tornaram referência em sua área de atuação. O sucesso, todavia, não veio fruto de sua heroica luta solitária contra tudo e contra todos (que até existiu), mas ele contou com a ajuda fundamental de “salvadores”, professores que não desistiram do jovem estudante, mas que, vivamente, o inseriram na matemática, na história, na filosofia.

Logo se vê que Pennac tinha tudo para ficar de fato de lado, pois, sendo ele um estudante ruim, o fatalismo era para ditar a sua vida. mas, com o passar do tempo, foi justamente o fatalismo que foi surpreendido, e o já professor Pennac procurou ser um professor que encarnava o presente em suas aulas. E o que seria a “presente de encarnação” (PENNAC, 2008, p. 56 – grifo do autor)? É o tempo chamado “agora”, em que, no caso, nada seria mais importante do que uma aula de francês, área de atuação do autor. Se o aluno tem dúvida de algo de gramática ou de literatura, o agora só pede uma coisa: que o professor lute com todas as suas forças para ensinar, não se contentando jamais com o “isso não é para mim”, “eu não compreendo”.

        Uma vez que minha área de atuação também é o ensino, li “Diário de Escola” como uma declaração de amor à docência, como a citação inicial nos dá a entender. Porém, preciso confessar uma tristeza: tantas vezes meus alunos de ensino médio e mesmo os de licenciatura não veem na docência algo a ser (per)seguido. Os motivos para o desencantamento com o magistério são os mais diversos, desde a tão propalada indisciplina escolar, passando pela falta de status social, até a estrutura da carreira docente tão frágil e incerta. Essas constatações, verdadeiras, me frustram enquanto formador de professores, no entanto, jamais posso deixar o fatalismo vencer a escola, a educação como um todo, pois é justamente a escola o lugar para a quebra do “tempo linear”, na expressão de Jan Masschelein e Maarten Simons (2019, p. 36).

        Diante do cenário acima, o que fazer? Uma paixão cega? Um idealismo juvenil? Não e não, mas uma paixão racional, um idealismo consciente, como dizia Albert Schweitzer (SCHWEITZER, s/d, p. 68). Paixão racional porque não é preciso desvincular uma esfera da outra, é possível gostar muito (amar) e enxergar problemas; e idealismo consciente porque este é feito de ações e não somente de sonhos e desejos. É diante desse horizonte que vem um valioso conselho de Pennac: “Eu também sempre encorajei meus amigos e meus alunos mais vivos a se tornar professores. Sempre pensei que a escola, antes de tudo, eram os professores. E quem me salvou da escola senão três ou quatro professores?” (PENNAC, 2008, p. 45). E não é justamente o incentivo à docência o que deve ser feito, ainda que em momentos de crise, tão corriqueiras à educação? Vide o diagnóstico de Arendt no clássico “A crise na educação”...

2. A escola e a salvação

 

Outra coisa: parece-me que eles tinham um estilo. Eram artistas na transmissão de suas matérias. Suas aulas eram atos de comunicação, certamente, mas de um saber a tal ponto conhecido, que passava quase por uma criação espontânea. Sua facilidade fazia de cada hora um acontecimento de que nos podíamos lembrar como tal. É de crer que a professora Gi ressuscitava a história, que o professor Bal redescobria as matemáticas, que Sócrates se exprimia pela boca do professor S.! Eles nos davam aulas tão memoráveis quanto o teorema, o tratado de paz ou a ideia fundamental que constituíam, naquele dia, o assunto. (PENNAC, 2008, p. 208).

 

        É um absurdo considerar a escola como um ambiente opressor, como um lugar que mais prejudica do que contribui. Se há críticas a serem feitas à escola, há mais méritos a enxergar. Dificilmente há (e haverá) outro lugar em que o indivíduo pode conhecer algo pelo simples amor ao saber. Por mais que haja um currículo (e anda bem que ele existe!) e que ele às vezes limite a liberdade (às vezes é preciso limitar a liberdade!), a instrução feita na escola busca ser mais formação do que informação, isto é, um repassar de conteúdos como se a aula fosse um jornal.

        Além do que foi dito no parágrafo anterior, há de salientar que se há casos de professores ruins (há muitos), há também inúmeros (!) casos de excelentes professores, que marcam tanto pelo modo de ser quanto pelo conteúdo. É comum nós, professores, vermos alunos que se sentem menos do que nada e que a família, carente de recursos materiais e de educação formal, certamente faria uma reprodução de seus vícios em seus filhos. Porém, é por meio da escola, de mestres de verdade, que é possível “salvar” a criança e o jovem de um futuro fatalista: por causa disso a escola é o templo da liberdade.

        Por outro lado, quem é envolvido com a educação sabe que educar é um ato dos mais complexos e pode ter várias dúvidas. No entanto, e nisso Daniel Pennac dá uma receita simples e eficaz para que os professores deem mais um salto de qualidade: o professor tem que estar presente na aula. O que isso significa? Que do momento em que entra em sala ao momento em que sai, o professor de história deve ser a própria história, o de matemática a própria matemática. E por estar presente, o professor não aceita a ignorância sobre a sua matéria e nem a ausência de quem quer que seja. Esse é um ato de amor e de resistência: querer que todos estejam inseridos no “agora”. É o agora que salva, não o antes, não o depois.

 

Os professores que me salvaram – e que fizeram de mim um professor – não eram formados para isso. Eles não se preocuparam com as origens da minha enfermidade escolar. Eles não perderam tempo em buscar as causas nem em me passar sermões. Eles eram adultos confrontados com adolescentes em perigo. Eles me disseram que havia urgência. Eles mergulharam. Perderam-me. Mergulharam de novo, dia após dia, mais e mais... Acabaram me tirando de lá. E muitos outros, comigo. Eles literalmente nos resgataram. Nós lhes devemos a vida (PENNAC, 2008, p. 33).

 

 

Albert Schweitzer. Minha infância e mocidade / Histórias africanas. Trad. de José Geraldo Vieira. São Paulo: Companhia Melhoramentos, s/d.

Daniel Pennac. Diário de Escola. Trad. de Leny Werneck. Rio de Janeiro: Rocco, 2008

Jan Masschelein & Maarten Simons. Em defesa da escola: uma questão pública. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2019.

Dr. Felipe Figueira

Felipe Figueira é doutor em Educação e pós-doutor em História. Professor de História e Pedagogia no Instituto Federal do Paraná (IFPR) Campus Paranavaí.


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