A generic square placeholder image with rounded corners in a figure.


Artigo: Presente de professor


Por: Especial para JN
Data: 20/10/2023
  • Compartilhar:

Jacilene Cruz

Fotos: Divulgação/Acervo pessoal

Ser professor continua sendo um desafio. Arrisco-me a colocar um adjetivo para dar mais significado ao substantivo: ser professor é um GRANDE desafio. Se eu começasse a falar das dificuldades aqui, arrastaria todos que leem para um estado de melancólica tristeza, felizmente não é esse o objetivo. Podem respirar aliviados: ufa!

São mais de vinte anos em sala de aula, e pasmem: ainda me surpreendo. Me vejo encantada com alguns encontros e descobertas. Sou professora de Língua Portuguesa no Ensino Médio na Escola Estadual Mário David Andreazza, em Boa Vista – Roraima. Aí vocês respiram fundo e dizem: ? escola pública...

Minha disciplina (Língua Portuguesa) engloba os conhecimentos linguísticos, a produção de texto e a literatura do nosso vernáculo. Amado vernáculo, digo de passagem. Parecem ser muitas atribuições para um só professor, de fato é. Porém os meus bons olhos não gostariam de vê-las separadas, então, sigo unindo o complexo ao agradável. Extremamente agradável.

Para encerrar essa introdução que já se estendeu demais, entretanto é necessária para o deleite do que virá, resta-me lembrar-lhes de que, aqui no extremo norte, a quantidade de alunos que não têm o português como língua materna é muito grande. Devido a fronteira com a Venezuela, a língua castelhana habita com força as salas de aula.

Assim, tenho que repensar o tamanho do “desafio” que é ser professor. Deixa de ser um GRANDE, passa a ser ENORME. Mas, quem seria Davi se não fosse Golias? Isso já foi perguntado pelo amigo Felipe Figueira em A poeirinha da ampulheta[1].

Nesses arredondados vinte anos, tenho buscado tornar minha prática mais efetiva. Fazendo com que a aprendizagem aconteça de fato. Que o aluno se veja refletido na escola, que lá seja o seu alegre lugar nos anos da aprendizagem sistematizada obrigatória e nas suas eternas lembranças. Existe melhor maneira de aprender se não de forma alegre e colorida? Quem souber, me conte.

Foi com esse intuito que solicitei aos alunos que fizessem um poema. Na verdade, sempre peço que façam textos literários, não apenas desse gênero, mas dominar a estrutura de um poema ou narrativa é se apossar de ferramentas que promovem a estruturação de outros setores da vida e do estar no mundo. Assim já disse Antônio Candido[2].

As propostas de produção sempre visam entrelaçar questões linguísticas e literárias. Assim, nesse meio recheado de figuras de linguagem e dos versos barrocos de Gregório de Mattos, propus aos alunos construírem um poema que exprimisse angústia, que revelasse um sujeito bifurcado, entre a dor e a alegria, o céu e a terra, a carne e o espírito...

Entretanto, como a distância temporal entre o Boca do Inferno e meus alunos é grande, usei um outro baiano para ilustrar o que é um eu lírico carregado de contradições. Foi assim que Caetano Veloso participou da aula cantando Os quereres. Mas, como aponta T.S. Eliot[3], o ser humano só sente em sua primeira língua, a materna, então trouxe a versão em espanhol: Los quereres. Afinal, a intenção era despertar emoções em todos os idiomas.

Dessa forma, chegou até a mim, e agora a vocês também, este texto. Peço que dediquem um pouco mais de atenção, pois está em espanhol, mas a leitura é fácil, fácil.

 

Para ti

 

Verte agradable e inquietante.

Corto el momento

largo en mis pensamientos.

Al no conocer quise encontrar.

Me dije a mi mismo: que te hablaría.

Y al hablarte tú callaste.

Su mirada fría como la nieve, cabello largo como caída de cascada, pequeña extremadamente tierna.

Te noté fría, yo caliente.

Concentrado en lo que te decía.

Tu descentrada al no conocerme.

Mucha conexión.

Al largo tiempo creamos confianza.

En un lapso determinado de tiempo.

Se entrego a mí.

Sus labios mojados trozaron mi agonía.

Y pensé que morir en ti sería el mejor final.

Besabas sus pies para estar en sus huellas.

Conocimos lo desconocido.

Ella revivió cada fracción muerta de mí.

Prometimos amar,

terminó en odio.

No te sentías cómoda.

En ocasiones incómodas.

Era luna brillante, yo sol opacante.

De querer tanto lo sucedido.

Odié mi imaginación.

Fue un sueño, sentí cierto estado despierto

si pudiera volver a escuchar su risa.

La guardaría,

dejaría sonar cuando el silencio cruce la soledad.

Reí, también lloré.

No te amo, tampoco te odio.

Pasé de ser un viejo aburrido a una.

Nueva versión de mí.

Gracias a el sueño.

Y a ti.

Rodolfo Pérez

 

Se você ficou sem palavras, também fiquei, mas recuperemos o fôlego e sigamos. Rodolfo é um aluno migrante que cursa a primeira série do Ensino Médio. Desde o primeiro dia, percebi que tinha facilidade com as questões de Língua, e aqui não posso dizer que ele tem facilidade com a língua espanhola apenas, como mostra o poema, o domínio linguístico é amplo.

É importante ressaltar que, para o aluno migrante tudo é muito difícil. A concepção de educação não é a mesma do seu país de origem. Os conteúdos, as abordagens, as cobranças, enfim, tudo é muito diferente e ameaçador: a língua não é sua, consequentemente, nada ali lhe pertence. Daí a importância de o professor tentar ao máximo equacionar as línguas. Uma vez equânimes, sujeitos também equânimes brotarão.

E quem perde com isso? O aluno brasileiro? O migrante? O professor? A escola? A educação? Esses questionamentos não são retóricos, eu mesma respondo: Não, não há perdas. Tudo, tudinho mesmo é aproveitado. Cada segundo vivido, cada som emitido, cada palavra ouvida. Só há ganhos.

Pedi aos alunos de origem venezuelana que escrevessem na língua que eles sentem, na que pulsa, quer dizer, late dentro deles. Disseram que poderiam usar o google tradutor e me entregar em português. Porém, como aprendi nas aulas de Filologia Românica[4], toda tradução é uma traição. Sem traidores dessa vez.

Rodolfo foi cirúrgico na construção de Para ti. Versos fortes, carregados de sentimentos e conhecimentos linguísticos e literários. Entre “Corto el momento/largo en mis pensamientos”; “Sus labios mojados trozaron mi agonía”; “Era luna brillante, yo sol opacante” e “Pasé de ser un viejo aburrido a una/Nueva versión de mí” e tantas outras palavras que formam o todo contraditório do eu lírico, tem sangue e conhecimento latejando nas veias do aluno-artista.

Foi cirúrgico também quando eu trouxe para aula, antes da criação literária, a proposta de pintarem algo com as características da escola literária vista. Demandaria muito espaço explicar a razão d’eu trazer lápis de cor para as turmas de ensino médio. Portanto, deixo-os apenas apreciando as imagens: na primeira, Rodolfo fazendo leitura e, na segunda, desenho barroco pintado por ele.

Rodolfo Perez em leitura em sala.

Desenho “barroco” enfatizando a contradição através da luz x sombra.

 

Depois de tudo isso, posso reafirmar que ser professor continua a ser um imenso desafio, porém este se reveste de tristezas e alegrias, muitas alegrias! A escola pública perde as reticências e recebe uma exclamação alegre: A escola pública! Esfuziante e carregada de vida.

 

E por esperar tantos outros Rodolfos que continuo aqui.

[1] FIGUEIRA, Felipe. Versos de Varsóvia. São Paulo, Desconcertos Editora. 2023. p. 40.

[2] CÂNDIDO, Antônio. O direito a Literatura. In: Vários Escritos. 5ª edição.  Ouro sobre azul, Rio de Janeiro, 2011.

[3] ELIOT, T. S. De poesia e poetas. Tradução de Ivan Junqueira. São Paulo: Brasilense, 1991.

[4] Disciplina que estuda o mundo românico, isto é, a cultura e as línguas derivadas do latim.


Anuncie com Jornal Noroeste
A caption for the above image.


Veja Também


smartphone

Acesse o melhor conteúdo jornalístico da região através do seu dispositivos, tablets, celulares e televisores.