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Artigo: Como nasce uma feminista?


Por: Artigo de opinião
Data: 12/03/2024
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Por Jacilene Cruz

Foto: Divulgação

Gosto de começar os meus textos buscando conceitos, sendo assim, Aurélio define que feminista é relativo a feminino. Por sua vez, feminino entrou na língua portuguesa através da francesa. Esses franceses são sempre “pra frente”.

Deriva de féminisme[1],  advindo de femina, palavra latina que em português é fêmea.  Fechando as conceitualizações, feminista é a pessoa que trabalha, luta para que as mulheres tenham seus direitos civis e políticos garantidos, equiparados aos dos homens.

Abro parênteses para dizer que gostaria muito de ver esse conceito espalhado em outdoors nas mais longínquas cidades do país, quem sabe assim diminuiriam as significações veiculadas ao medo que alguns têm de perder a virilidade, o controle, a voz e a vez para uma fêmea. Fecho parênteses.

Não lembro a idade, mas eu era ainda criança. Nascida na Tapera, interior de Cruz das Almas, Recôncavo da Bahia. Cidade doce com a laranja, forte com a pesquisa[2]. Meu pai, seu Calixto, sustentava a família vendendo na Feira livre da cidade, juntamente com meus irmãos, itens que colhiam da pouca terra. Nunca passamos fome, mas Painho vendia o que tinha e podia ser vendido.

Assim, aos sábados ainda de madrugada, um caminhão parava na estrada em frente de casa, e nele eram colocadas as sacas de limão, milho, inhame, amendoim e o que mais pudesse ser colhido naquele período. O carro-chefe, porém, eram as laranjas: laranja-lima, pera, bahia, tangerina, lima da pérsia. Qualquer uma delas é, na minha memória afetiva, ainda muito doce.

Colhidas às sextas-feiras à tarde, para ainda estarem fresquinhas aos sábados. Algumas laranjas, porém, já caídas de maduras, poderiam ser vendidas por um preço menor. Eram as pecas. Aí entro diretamente nessa história: eu e meu irmão, um pouquinho mais velho, pegávamos, víamos se não estavam podres e ele vendia, mais em conta.

O feminismo entra nessa história por causa da última frase do parágrafo anterior: “ele vendia”.

Assim, sábado à tarde, depois de descansar o corpo que madrugou pelo sustento dos seus, Painho fazia a partilha: meu irmão ficava com a maior parte de dinheiro. Me cabiam entre 30 e 40 por cento do total de venda das laranjas pecas.

Aos meus olhos, aquela partilha não era justa, afinal, eu catava as laranjas e era algo trabalhoso, formigas e marimbondos sempre me acompanhavam. O que me fazia ganhar menos? Qual era a lógica da divisão? Questionei aborrecida: —Por que ele recebe mais que eu?

A resposta foi óbvia: eu não recebia igual porque quem acordava cedo e ia pra feira vender, embaixo de sol e chuva era meu irmão.

Sem pestanejar, falei: —Então, vou vender na feira, receberemos o mesmo valor. A continuação dessa conversa mudou minha vida para sempre:

—Você não pode ir.

—Por que? Continuei tentando ainda achar uma saída para o que eu não considerava justo.

—Porque você é mulher.

Não fui vender as laranjas, nem a divisão do dinheiro passou a ser igualitária. Não lembro se chorei, se esperneei ou se ainda argumentei mais um pouco.

O tempo passou, mas sei que foi ali que entendi que ser mulher me deixava numa situação desprivilegiada: não acessava certos lugares, não tinha independência financeira. Estaria sempre subordinada a visão masculina do mundo.

Outras lembranças de meu pai apagaram de minha memória a possível raiva que senti naquele momento. Hoje, adulta e independente, lembro dessa história com carinho. Foi ela quem me fez ser quem sou.

Nasceu ali, uma feminista. Tenho certeza de que, se vivo fosse, Painho teria orgulho da mulher que sou.

Sobre a autora

Jacilene Cruz nasceu na zona rural de Cruz das Almas, cidade do Recôncavo da Bahia, mas vive em Roraima desde o ano de 2000. É professora da rede estadual de educação. Licenciada em Letras e Mestra em Educação, busca pincelar o ensino da língua e literatura de leveza e beleza, por isso, optou por desenvolver alguns projetos literários e estudar a relação da poesia com o ensino e a aprendizagem. Além dos poemas, seus fiéis companheiros, também escreve crônicas poetizadas. 



[1] CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário Etimológico Nova Fronteira da Língua Portuguesa. 2ª edição. Editora Nova Fronteira. Rio de Janeiro. 1997.

[2] Slogan usado em um de seus aniversários da cidade que acontece em 20 de julho, lá pelos meados dos anos de 1980.


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