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Sobre glórias e angústias


Por: Simony Ornellas Thomazini
Data: 09/06/2022
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No último final de semana assisti ao documentário: Make Us Dream, de 2018, disponível na Amazon Prime, sobre Steven Gerrard, o maior jogador da história do clube de futebol de Liverpool, porém fez isso quando os títulos e troféus estavam em decadência. Dessa forma, virou missão pessoal levar o clube de volta ao topo, o que tornou-se um fardo extremamente pesado, insuportável, trazendo a si próprio a profunda responsabilidade em cumprir suas próprias expectativas.

Um fato muito comentado no documentário e alvo de enorme cobrança, principalmente por parte das torcidas, era conseguir ganhar a Premier League, a liga nacional e o campeonato favorito dos torcedores. Essa foi a parte fundamental da jornada de Steven e do clube que foi campeão 18 vezes e estava desde 1990 sem ganhar o título. Ficar tanto tempo sem ganhar um título tão importante quanto esse, gerou um peso nas costas de alguém tão identificado ao clube quanto Steven Gerrard.

No documentário, o ex-jogador deixa claro que o seu sentimento, temporada após temporada, era a de ganhar a Premier League. Mas, a de 2013-2014 foi a mais dolorida e isso é notável nas entrevistas.

Eu trago esse documentário hoje para discutir o quanto uma autocobrança, pressão, traz um peso insuportável ao corpo e a mente.

Diante de todo o cenário que se apresentava, Steven ocupou o papel de líder e capitão do time. Era notório o quanto se cobrava (e ainda se cobra) por tudo o que aconteceu ao Liverpool. Em alguns momentos do documentário ele revela que, em mais de uma vez, se questionava: “Será que sou bom o bastante?”

Apesar de toda a pressão que exercia sobre si mesmo, Steven tentava equilibrar seu amor e respeito pelo clube com sonhos pessoais de conquista. Em 2004 recebeu uma proposta de transferência para o Chelsea, um importante time londrino e rival do Liverpool. Essa proposta gerou uma insatisfação gigantesca nos torcedores que o chamavam de “traidor”. Porém, a identificação e paixão com o clube fez com que permanecesse no time.

Por uma ironia do destino, os dois times se enfrentaram na final da Copa da Liga daquela temporada. Na ocasião, o Liverpool foi derrotado com um gol contra de Gerrard. Esse foi o primeiro conflito e questionamento travado entre ele e a torcida. O filme mostra durante a transmissão do jogo, um comentarista dizendo: “Muitos vão dizer que esse foi o primeiro gol como jogador do Chelsea.”

Esse fato aumentou a pressão nas costas de Gerrard que, segundo ele, apenas uma conquista traria o orgulho de volta a torcida. A paixão desenfreada pelo Liverpool se apossou do capitão do time, e o consumia por completo. “Eu era o capitão do Liverpool. E capitães do Liverpool sempre vencem.”

Steven Gerrard conseguiu o seu momento de glória quando foi campeão pela Champions League contra o Milan. Porque mesmo diante do cenário apresentado, com grandes desfalques no time, por exemplo, ele não conseguia enxergar chances de alcançar esse título. Porém, a vitória trouxe a paz e o alívio aquela temporada.

No entanto, essa paz durou pouco tempo. Houve novamente uma proposta de transferência para o Chelsea, marcando o segundo momento de atrito com a torcida, desta vez, ainda mais intenso com pichações e camisetas queimadas. Mais uma vez Gerrard decide ficar, mesmo não tendo naquele momento, boa relação com o então técnico, Rafa Benitez.

O documentário nos mostra e nos faz refletir que, apesar das conquistas que Steven conseguiu, não conseguia esconder a frustração por não conseguir a Premier League.

Em um determinado momento da carreira, junto ao seu crescimento profissional, o seu corpo começou a responder a essas demandas incessantes. Ele revelou que precisou fazer vários tratamentos intensivos e tomar várias injeções e analgésicos para conseguir jogar. Na partida fatídica contra o Chelsea, a que enterraria o desejo do título tão desejado, Steven precisou tomar uma anestesia peridural para poder jogar. Esse é o jogo em que ele escorrega deixando a bola livre para o atacante do Chelsea, Demba Ba, fazer o primeiro gol londrino. O Liverpool foi derrotado por 2 gols, encerrando as chances de título do Campeonato Inglês, e, ficando, portanto, mais um ano na fila.

Na entrevista, Gerrard não consegue encontrar motivos para o que aconteceu, esse “escorregão”. No entanto, posso fazer algumas suposições do que possivelmente possa ter ocorrido.

Steven não estava em condições de jogar, seu corpo apresentava limitações. A pressão que vinha sofrendo por parte da torcida estava num nível insuportável, o resultado disso, foi apresentado através do que lhe era mais caro no momento: seu corpo. A frustração, o peso, as expectativas, a responsabilidade de alcançar esse título tão precioso ao clube o fez sucumbir.

Esse escorregão foi muito simbólico porque representou a falha, o erro, o tropeço, e o preço caro demais por todo o peso que estava em suas costas. Talvez, esse manejo tenha sido uma espécie de resposta que o seu corpo encontrou de dizer: Chega! E, mais, de dar, aquela torcida que o assombrou por tanto tempo, a mesma frustração que ele sentia por carregar tantas responsabilidades em sua conta. Ele não conseguiu alcançar o que mais desejava, ou, seria a torcida? A pressão o cegou por completo, e, o seu corpo, “escorregou”.

O documentário encerra com Steven sendo treinador da equipe de base do Liverpool dizendo que sua jornada não está completa. Ele ainda deseja o título, mas, dessa vez, sob o seu próprio comando. A pressão da torcida continuará, mas, ele não será o alvo principal, não precisará pagar com o próprio corpo, tomará suas próprias decisões, direcionará as regras do jogo. O seu papel será totalmente outro.

Quantas vezes na vida já fomos Steven? Quantas vezes o nosso corpo e mente sucumbiu as demandas e pressões internas e externas? Quantas vezes ouvimos e demos voz ao que realmente desejamos? Esse documentário é sobre a glória e a derrota. Sobre as angústias e falhas. Sobre a humanidade escancarada de um grande jogador de futebol que falhou, mas que nem por isso, é retirado todo o mérito, conquistas, competência por sua brilhante jornada e ídolo do futebol.

 

 

Simony Ornellas Thomazini


Anuncie com Jornal Noroeste
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