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Reforma Protestante, 97 Teses e uma Nova Epistemologia


Por: Fernando Razente
Data: 25/10/2021
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No dia 31 de outubro de 1517, um monge agostiniano chamado Martinho Lutero (1483-1546), afixou na porta da Igreja de Wittenberg (Alemanha) suas 95 Teses contra práticas específicas da cristandade medieval,[1] especialmente as indulgências,[2] convidando a todos para um debate formal.[3] Em resumo, o resultado desse protesto religioso misturado com longos conflitos políticos foi uma separação definitiva de cristãos e teólogos protestantes da Igreja Católica Apostólica Romana. Desde então, surgiram novas alas eclesiásticas na fé cristã declarando em unidade a autoridade suprema das Sagradas Escrituras. Na mesma época, surgiram os reformadores, líderes religiosos que buscavam organizar teologicamente o movimento protestante, como Ulrico Zuínglio (1484-1531), João Calvino (1509-1564) e John Knox (1505-1572). Pareceu a muitos que a Reforma Protestante não se preocupou inicialmente com questões relacionadas ao conhecimento científico, como se restringisse apenas às discussões soteriológicas e eclesiológicas. Contudo, quero demonstrar que a noção da Reforma como um ato de natureza estritamente religiosa, como defendeu o historiador da igreja cristã Philip Schaff em seu clássico History of the Christian Church[4] (Vol. VII) é equivocada, pois ignora o contexto fundamental das questões que preocupavam Lutero. Quero dizer que antes de conhecer a salvação, Lutero teve que resolver uma questão ainda mais básica: a natureza do conhecimento. Em seu livro História da Reforma, o professor Carter Lindberg defende o impacto significativo da reforma em áreas de conhecimento, dizendo, especificamente, que as “(...) doutrinas reformadas da justificação e vocação também tiveram grande impacto no desenvolvimento da educação e das ciências”.[5] É verdade que muitas contribuições posteriores dos reformados foram feitas nessas áreas, mas a raiz dessas contribuições estava na mudança radical de paradigma epistemológico, ou seja, na mudança da autoridade sobre a reflexão em torno das etapas, da natureza e dos limites do conhecimento humano. Para compreendermos isso, devemos nos lembrar que Lutero era um monge da Era Medieval; e, como tal, estava inserido em um sistema escolástico de ensino. O escolasticismo surge em meados dos séculos IX, tem seu auge no século XIII e é comandado por religiosos que buscavam satisfazer as demandas por respostas racionais às exigências da filosofia pagã. Apesar de ser considerada uma escola de pensamento, se olharmos com exatidão, veremos que a escolástica não se enquadra nessa categoria conceitual. Na verdade, o escolasticismo é mais um método filosófico que foi utilizado e aprimorado nas universidades da Idade Média (LE GOFF, 2000), do que propriamente uma escola em seu sentido corporativo e organizacional como conhecemos atualmente. Também sabemos que a escolástica foi um momento histórico especialmente livresco, ou seja, um período completamente dado ao estudo formal de abordagens técnicas e à leitura. É um método que levou os intelectuais da Baixa Idade Média à um nível de rigor ímpar na história. Essa tese é reforçada por alguns escritores e estudiosos, como o brasileiro Mário Ferreira dos Santos (2017), defensor da ideia de que “(…) a escolástica representa um período de máxima importância da filosofia. (…) Mas o que a tornou imensamente válida, e de uma importância ímpar, foi a realização da mais extraordinária análise que se conheceu na história do pensamento humano. A análise, levada em extensão e intensidade, permitiu que surgissem novos veios para o filosofar, veios que ainda não foram devidamente explorados” (SANTOS, 2017, p. 135). O movimento escolástico foi representado por grandes intelectuais medievais, tais como Alberto Magno (1206-1280), Alexandre de Hales (1185-1245), Roger Bacon (1220-1292) e São Boaventura (1221-1274). Contudo, ela “(...) alcança seu ponto mais alto” através do dominicano Santo Tomás de Aquino (LE GOFF, 2019, pp. 132-133). Tomás de Aquino (1225-1274) — assim como a grande maioria dos teólogos medievais — tinha um enorme apreço pelo pensamento de Aristóteles (384-322 a.C.), um filósofo grego pagão. Aristóteles concebia o centro da natureza humana no intelecto e cria que a mente humana possui potencialidades naturais capazes de explicar a razão de todas as coisas. Tomás de Aquino tratou de “batizar” Aristóteles e empregou seus métodos de  lógica na elaboração de uma epistemologia cristã,[6] sustentando a ideia aristotélica de que o intelecto de forma natural (sem a revelação da Palavra) poderia alcançar a plena verdade sobre a realidade.[7] Como defende Francis Schaeffer, na “(...) concepção tomista, a vontade humana está decaída, mas não o intelecto.”[8] Lindberg comenta que de acordo com Tomás, “(...) a graça não despreza a natureza, mas sim a completa. Por isso, a frase escolástica famosa facere quod in se est (faz o que está dentro de ti) significa que a salvação é um processo que se desenvolve dentro de nós na proporção em que nos aperfeiçoamos.”[9] Essa concepção de intelecto intacto e de potencialidade racional natural predominou nas universidades medievais durante muito tempo, levando os teólogos escolásticos a ignorarem os efeitos noéticos da queda[10] depositando uma altíssima confiança na razão natural para se obter o conhecimento de Deus, do homem e da natureza. No entanto, a mudança de paradigma epistemológico começou a ocorrer exatamente com Lutero. Poucos sabem, mas um mês antes das 95 Teses, Lutero produziu um controverso documento chamado “Disputa contra a Teologia Escolástica” que consistia numa coletânea de 97 proposições contrárias a filosofia e a teologia predominante entre os escolásticos do seu período. Em sua 43ª Tese, Lutero defende: “É um erro dizer que nenhum homem pode se tornar um teólogo sem Aristóteles. Contrário à opinião geral.” Vemos um reflexo dessa rejeição de Lutero ao aristotelismo medieval quando reformas curriculares na Universidade de Wittenberg haviam substituído estudos escolásticos por estudos bíblicos baseados em Agostinho.[11] Santo Agostinho (354-430 d.C.) foi um teólogo católico que defendeu a completa corrupção da natureza humana baseado no testemunho das Escrituras de que o homem está morto em seus delitos e pecados e naturalmente destituído do conhecimento de Deus (Efésios 2.1; Romanos 3.23). Ele ensinou a necessidade de total redenção do homem mediante Jesus Cristo, inclusive a redenção da mente (Rm 12.2). Para Agostinho, o homem natural  sem a regeneração que é dom de Deus  não pode jamais alcançar conhecimento verdadeiro ou exato sobre qualquer coisa, nem sobre si mesmo, nem sobre a natureza nem sobre os limites de ambos, já que todos esses conhecimentos dependem do conhecimento de Deus. A Escritura  — essa revelação especialmente escrita de Deus — deveria ser a autoridade máxima ao ensinar o homem sobre sua verdadeira natureza, sobre o verdadeiro ser de Deus (não como um Primeiro Motor[12]) e sobre a criação. O homem deveria crer na autoridade das Escrituras. A fé na Palavra divina deveria anteceder e guiar o uso da razão natural: crede, ut intelligas [creia para que possa entender], dizia Santo Agostinho. Lutero herdará de Agostinho essa noção de autoridade das Escrituras acima da razão.[13] Com essa mudança de autoridade no ponto de partida do pensamento — isto é, de um escolasticismo tomista-aristotélico para uma epistemologia fundamentada na Bíblia  — todo o empreendimento intelectual cristão a respeito de qualquer área da vida havia sido radicalmente transformado! A Bíblia, na Reforma, se tornou o centro de referência não só sobre questões de salvação, mas sobre epistemologia, antropologia, educação e ciências. Como bem sintetizou o filósofo cristão Herman Dooyeweerd: “A Reforma rompeu com a visão católica romana acerca da relação entre natureza e graça, pelo menos em termos teológicos. Rejeitou o ensino da igreja segundo o qual a Queda não havia corrompido a raiz da ‘existência natural’, mas somente causado a perda de tal ‘dom supratemporal da graça’.”[14] Assim, uma das maiores contribuições da Reforma Protestante foi colocar novamente a Palavra de Deus como autoridade suprema sobre as reflexões a respeito da natur



[1]Lutero foi muito direto em suas 95 Teses. Veja a 54ª Tese: “Esperar ser salvo mediante breves de indulgência é vaidade e mentira, mesmo se o comissário de indulgências, mesmo se o próprio papa, oferecesse sua alma como garantia.”

[2]“A prosperidade extraordinária do negócio de indulgências era abastecida tanto pelo desejo dos que criam quanto pelo interesse financeiro da Igreja. Se isso soa surpreendente, pense na atratividade e no sucesso de alguns evangelistas de nosso tempo, que, usando meios de comunicação em massa, prometem satisfazer desejos modernos de controlar Deus e vencer inseguranças.” (CARTER, Lindberg. História da Reforma, p. 88.)

[3]Lutero entendia seu questionamento sobre as indulgências como um debate acadêmico, ao qual tinha direito em razão de seu juramento doutoral.

[4]"A Reforma foi, a princípio, um movimento puramente religioso, e fornece uma impressionante ilustração do poder todo-pervasivo da religião na história. Principiou a partir da pergunta: Que um homem deve fazer para ser salvo? Como será um pecador justificado diante de Deus, e como alcançará a paz de sua perturbada consciência? Os reformadores eram sumamente preocupados com a salvação da alma, com a glória de Cristo e o triunfo de seu evangelho. Pensavam muito mais no futuro do que no presente, e todos os interesses políticos, nacionais e literários, eles tornaram subordinados e submissos à religião." (SCHAFF, Philip. History of the Christian Church. Vol. VII)

[5]CARTER, Lindberg. História da Reforma, p. 430.

[6]“Tomás de Aquino, o ícone do escolasticismo católico romano, concebeu a razão natural como independente da revelação de Deus em Cristo Jesus. A erudição, a moralidade, a vida política e a ‘teologia natural’ foram, então, tal como áreas autônomas da razão natural, praticadas de uma forma pagã-aristotélica.” (DOOYEWEERD, Herman. Estado e Soberania, p. 46.)

[7]O termo noético procede no grego noésis (latim: intellectus) e designa a faculdade intelectual ou racional do ser humano. Assim, os efeitos noéticos do pecado são estas consequências da queda do homem no intelecto humano.

[8]SCHAEFFER, Francis. A Morte da Razão.

[9]CARTER, Lindberg. História da Reforma, p. 90.

[10]“A tradição reformada considerou como um dos efeitos noéticos da Queda essa impossibilidade de que o homem, munido tão somente da razão, alcance um conhecimento suficiente de Deus.” (MADUREIRA, Jonas. Inteligência Humilhada, p. 79.)

[11]“Nossa teologia e Santo Agostinho estão progredindo bem, e com a ajuda de Deus, tornaram-se proeminentes na universidade. Aristóteles está sendo gradualmente tirado do trono; sua condenação final é só uma questão de tempo [...] De fato, ninguém pode esperar ter sequer um aluno caso se recuse a ensinar essa teologia, isto é, aulas com base na Bíblia, sem Santo Agostinho ou em algum outro mestre de eminência religiosa.” ( Lutero, LW 48, p. 42. Na primavera de 1517, a um amigo em Erfurt.)

[12]“A este Deus [Causa Primeira] não pode o homem nem orar, nem sacrificar. Diante da Causa Primeira, o homem não pode nem cair de joelhos por temor, nem pode, diante deste Deus, tocar música e dançar.” (Martin Heidegger, Que é isto, a filosofia? Identidade e diferença. Petrópolis: Vozes, 2006. p. 75.

[13]Lutero estabeleceu a distinção entre o Uso Magisterial da Razão e o Uso Ministerial da razão, onde Magisterial é a razão juiz sobre a Palavra, refletindo a filosofia tomista; e, o Ministerial é a razão humana que submete-se, serve e é guiada pela Palavra de Deus.

[14]DOOYEWEERD, Herman. Estado e Soberania, p. 54.

Fernando Razente

Amante de História, atuante com comunicação e mídia, leitor voraz e escritor de artigos de opinião e matérias jornalísticas.


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