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Por que a ciência é possível?


Por: Fernando Razente
Data: 24/01/2022
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“Corte-me e sangrarei. Mas não sou feito de nada e, se o Mágico, o Poeta, a Palavra, se o Cantor parasse sua voz, eu simplesmente deixaria de existir.”  WILSON, N. D. Notas da Xícara Maluca. p. 40.

 

A fé cristã não está preocupada em provar a existência de Deus por vias racionais.[2] A compreensão de que Deus existe, que Ele fez o mundo e sustenta-o de maneira pessoal pela palavra do seu poder (Hb 1.3), bem como a nossa total dependência d’Ele (At 17.25), não é recebida através de argumentos lógicos, mas de .[3] O máximo que um argumento lógico pode fazer é aproximar a experiência humana com os fatos da vida à narrativa geral da Bíblia e demonstrar nisso uma perfeita harmonia entre fé e razão. Neste sentido, um argumento lógico é capaz de produzir em nós uma visão positiva em relação à fé cristã, mostrando como a Bíblia apresenta doutrinas que abordam o todo da realidade humana com coerência e razoabilidade. Todavia, entre ter uma visão razoável da fé cristã e viver a fé cristã sincera e piedosa no Deus Triuno e pessoal das Escrituras há uma longa distância que é, ao meu ver, superada somente pela graça de Deus mediante seu Espírito regenerador.  Portanto, ao argumentar aqui sobre a relação de dependência da possibilidade da ciência para com a fé cristã, não é minha intenção dar provas da existência de Deus ou converter alguém ao cristianismo, mas apenas mostrar como a nossa experiência comum com as leis científicas estão de acordo com a cosmovisão cristã, e assim, de algum modo, levar os meus leitores a considerar a razoabilidade da fé cristã. Consideremos agora a seguinte questão: Por quê a ciência é possível? Por que podemos estudar de modo seguro e chegar a conclusões objetivas a respeito da natureza das coisas? Tanto a resposta cientificista como a solução da teologia cristã dizem que isso se deve às leis da natureza[4] ou regularidades. Ou seja,  a práxis científica é condicionada e possibilitada pelas leis naturais. Sem leis não existiria ciência. Sem regularidade, o cientista estaria em apuros, pois não teria base nenhuma para experimentos, testes, previsões, limites, etc. Para tornar isso mais prático, se não houvesse uma lei de gravitação nenhum cientista poderia calcular o voo e o pouso de uma nave espacial até a lua com uma precisão segura, de modo a garantir que os tripulantes pudessem sobreviver e voltar para contar o que viram. Algumas dessas leis como a lei de movimento e gravitação de Newton são populares, e ficaram conhecidas com o empreendimento de alguns cientistas. Cito outras como a lei de Dalton das pressões parciais e as leis de Kirchhoff de circuitos elétricos e poderíamos citar ainda várias outras. Essas leis não foram criadas pelos cientistas, mas apenas reconhecidas no processo de investigação do mundo. Esse processo revelou que as leis não são somente necessárias à ciência neste mundo, mas ao empreendimento espacial, pois são leis universais. Isso significa que as leis da natureza não são aplicáveis e reconhecíveis somente em nosso planeta, mas em toda a nossa galáxia (Via Láctea) e até em outras galáxias, como Andrômeda. O segundo ponto    que a posição cientificista não consegue responder    é o por quê haver uma regularidade? Em outras palavras, qual a razão dessas regularidades (que determinam a sobrevivência da ciência) existirem? Quem as mantém em funcionamento? Por quê há uma regularidade? Uma resposta cristã sem rodeios a todas essas questões é: porque Deus promete. Deus fala e Sua fala é Seu compromisso pessoal de fazer com que essas regularidades sejam o que são. São as palavras de Deus que especificam as regularidades deste mundo. A origem das regularidades está no comando de um Deus pessoal, e é por isso que sem Deus não haveria possibilidade de ciência.[5] Para parecer menos dogmático, deixe-me explicar em termos mais argumentativos. Leis naturais são racionalmente reconhecíveis, existem de maneira imaterial e são aplicáveis de  forma autoritária. Porém, não podemos reconhecer esses atributos pessoais das leis científicas sem nos perguntar porque são assim. Afinal, como leis impessoais podem ter atributos pessoais? Em primeiro lugar, para os cristãos, as leis são racionalmente reconhecidas porque elas são racionais, pois refletem a existência de uma mente inteligente por detrás das leis naturais que asseguram a prática científica cotidiana. Em segundo lugar, para os cristãos as leis são imateriais pois foram concebidas na mente de Deus, que é espírito e que do nada (ex nihilo) falou todas elas no ato da criação. Por fim, para os cristãos ela é autoritária pois sua função é cumprir a ordem criacional de Deus para o seu mundo: Enquanto durar a terra, não deixará de haver sementeira e ceifa, frio e calor, verão e inverno, dia e noite.” (Gn 8.22). Portanto, esses atributos pessoais na visão cristã apontam para uma pessoa inteligente por trás das regularidades reconhecíveis e aplicáveis. Essa pessoa inteligente é o que nós cristãos conhecemos, pela fé, como o Deus Todo-poderoso revelado nas Escrituras Sagradas. É verdade que Deus poderia deixar de falar. Ele poderia silenciar sua voz ou ainda, quem sabe, poderia falar de outra maneira (o que talvez aconteça em galáxias ainda desconhecidas). Mas, é porque Ele falou e decidiu continuar a falar diariamente através das leis da natureza que a ciência é possível. Na época de Newton e Kepler, uma ideia parecida gerou alguns problemas, a ideia do Deísmo de que “[...] Deus criou o mundo de maneira racional e ordenada, refletindo sua própria natureza racional, e dotou de ordem natural com a capacidade de se desenvolver e funcionar sem a necessidade de sua presença ou envolvimento contínuo. Esse ponto de vista, que se tornou especialmente influente no século 18, tendia a seguir Kepler ao pensar no mundo como um relógio e em Deus como um relojoeiro. Deus dotara o mundo com certo desing autossustentável, de modo que pudesse funcionar posteriormente sem a necessidade de intervenção contínua.”[6] Isso levou muitos cientistas daquela época, e não menos na nossa, a reconhecer a razoabilidade da narrativa criacional de Gênesis, de que Deus agiu com inteligência ao ordenar o funcionamento do mundo através das regularidades, mas não de admitirem a presença de Deus entre nós ainda hoje através da Providência[7] e nem de milagres.[8] Era, e ainda é para alguns, como se Deus tivesse falado uma vez e agora, estabelecida as leis da natureza pela sua palavra, a vida poderia caminhar livremente sem o Seu comando. A ação de Deus no mundo cotidiano dos indivíduos torna-se, nesta visão, inconcebível, e os milagres são vistos como profanações das regularidades. No entanto, essa não é a verdadeira visão bíblica da relação entre Deus e regularidades. Ele não só falou uma vez e criou leis naturais, mas sua presença é real entre nós todas as vezes que as suas leis são cumpridas, por exemplo, em nossa natureza biológica, física e química, sendo aplicáveis quando sou cortado por um bisturi e sangro. Enfim, Deus falou e as leis vieram à existência e Ele ainda fala e é por isso que o cientista tem um emprego. Sua fala fez o mundo e tudo o que o rege, e Sua majestosa voz o governa diariamente, pela Providência. Portanto, “por que um cristão alegaria que Deus parou de falar? Ele falou o mundo à existência? A matéria existe à parte dele? Ele ainda está aqui? Você ainda está aqui? Então, ele ainda está falando.”[9]



[1]Professor da Rede Sagrado Coração de Jesus. Colunista em Educação para a Gazeta do Povo. Membro da Associação Brasileira de Cristãos na Ciência. Formado em História pela Faculdade Santa Maria da Glória e Unicesumar.

[2]O teólogo medieval Santo Tomás de Aquino (1225-1274) ficou conhecido como sendo o elaborador de argumentos filosóficos tradicionais que provam a existência de Deus, as famosas “Cinco Vias”. Porém, como alertou Alister McGrath, “Em alguns livros didáticos as ‘Cinco Vias’ são descritas como ‘provas’ da existência de Deus. Isso é um exagero. Por várias razões, esses argumentos tradicionais são mais bem-vistos como uma demonstração da racionalidade interna da crença religiosa.” (McGrath, 2020, p. 159)

[3]Pela fé, entendemos que foi o universo formado pela palavra de Deus, de maneira que o visível veio a existir das coisas que não aparecem.” (Hebreus 11.3)

[4]“Os historiadores geralmente concordam que o conceito moderno de ‘leis da natureza’, entendido como descrições matemáticas de regularidades sem exceção, surgiu pela primeira vez na cultura ocidental durante o início do período moderno, principalmente pela influência de Galileu, Kepler e Newton. Embora o conceito de regularidade da natureza fosse amplamente aceito durante a Idade Média, a expressão específica ‘leis da natureza’ não era usada para indicar essa racionalidade, mas em geral empregada para fazer referência a leis morais que, se acreditava, eram fundamentadas em uma ordem divinamente estabelecida” (McGrath, 2020, p. 178)

[5]Sugiro aos leitores assistirem a palestra do Dr. Vern S. Poythress sobre a possibilidade da ciência: https://www.youtube.com/watch?v=bzmNdDZBMQw&t=819s acessado em 18/01/2022.

[6]MCGRATH, Alister. Ciência & Religião: fundamentos para o diálogo. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2020. p. 179.

[7]“A doutrina bíblica não é o deísmo (que ensina que Deus criou o mundo e depois, essencialmente, abandonou-o) nem o panteísmo (que prega que a criação não tem existência real e distinta em si mesma, mas meramente faz parte de Deus), mas a providência, que ensina que, embora Deus, em todos os momentos, se relacione e se envolva diretamente com a criação, esta é distinta dele. Além disso, a doutrina bíblica não ensina que os acontecimentos da criação são determinados pelo acaso (ou causalidade). Nem são eles determinados por um destino impessoal (determinismo), mas por Deus, que é o criador e senhor pessoal, porém infinitamente poderoso.” (Grudem, 2001, p. 247)

[8]“A crítica influente de David Hume aos milagres depende de compreendê-los como ‘violações das leis da natureza' ou ‘transgressões de uma lei da natureza por determinada vontade da Deidade ou pela interposição de algum agente invisível'." (McGrath, 2020, p. 192)

[9]WILSON, N. D. Notas da Xícara Maluca. Brasília, DF: Editora Monergismo, 2017.  p. 45.

 

 

Fernando Razente

Amante de História, atuante com comunicação e mídia, leitor voraz e escritor de artigos de opinião e matérias jornalísticas.


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