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O que não é fé (parte I): a herança de Kierkegaard


Por: Fernando Razente
Data: 27/09/2021
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Aos poucos, através do engajamento de igrejas cristãs bíblicas, filósofos e cientistas cristãos e instituições educacionais confessionais, o vácuo de uma presença cristã intelectualmente sólida na discussão pública brasileira vai desaparecendo. Esse crescimento da participação cristã em universidades e demais centros de pesquisa deve contribuir muito para alguns esclarecimentos a respeito do valor da fé cristã na atividade científica; mas, não somente sobre a importância da fé para ciência, como também no reconhecimento da importância da ciência para a fé. No entanto, o processo ainda é lento e espiritualmente difícil, visto que não estamos lidando meramente com problemas cognitivos e metodológicos nessa relação, mas, em última instância, um problema moral. É notório o fato de que grande parte das instituições educativas estejam se movendo intencionalmente e isso revela a não neutralidade científica  mais para uma visão de conflito entre fé e ciência; e, não raro, o problema não se fundamenta somente na má compreensão dos limites da ciência por partes dos cientistas, mas também da compreensão que possuem sobre o conceito da fé, compreensão essa que tomam emprestada das infelizes declarações de cristãos sobre a ideia de fé. Para muitos fiéis, ter fé é abandonar a razão e viver com confiança, é caminhar de forma contrária ao que se apresenta na realidade. Essa simplista e equivocada definição serve de munição para os cientistas deixarem a religião marginalizada nas instituições. Daí a importância de levantar uma conceitualização mais apropriada da noção de fé para, então, relacioná-la corretamente com a ciência (pois uma definição equivocada a respeito do que é fé, leva fatalmente a uma compreensão falha da relação entre fé e ciência). Algumas das atuais definições equivocadas sobre fé tem origem em épocas antigas. Embora comportem linguagens distintas, elas preservem o mesmo princípio: o da fé como um escapismo intelectual, um suicídio da razão. Charles Spencer Chaplin (1889-1977) famoso ator e diretor inglês, também conhecido como o maior artista da era do cinema mudo, disse certa vez: “Minha fé é no desconhecido, em tudo que não podemos compreender por meio da razão. Creio que o que está acima do nosso entendimento é apenas um fato em outras dimensões e que no reino do desconhecido há uma infinita reserva de poder.” Assim como Chaplin, muitos ainda acreditam que a fé não pode ter nenhum contato com a realidade e portanto trata-se de um aspecto totalmente contrário às categorias e metodologias da ciência. A ciência, neste sentido, em nada pode contribuir para a fé e tampouco a fé para a ciência. A construção filosófica mais famosa dessa ideia se deu com o filósofo dinamarquês Søren Kierkegaard (1813-1855), o pai do existencialismo moderno, que influenciou outros pensadores como Sartre, Camus, Heidegger, Barth, entre outros. Kierkegaard, apesar de nunca ter usado a expressão “salto no escuro” como nos lembra o brasileiro Ricardo Quadros Gouvêa, especialista no autor deu por entendido através de seus mais de 50 títulos seu conceito de fé neste sentido. Mas em que sentido exatamente a fé era um salto no escuro para Kierkegaard? De acordo com a compreensão da realidade de Søren Kierkegaard, a existência humana é repartida em três estádios e/ou fases: o estético, o ético e o religioso. Há uma gradação em termos de aprofundamento (subjetivo) entre os três estádios descritos pelo filósofo. Resumindo, para Kierkegaard, todo indivíduo inicia sua jornada existencial na fase do estético, da experiência sensitiva e corpórea que se expressa em uma vida vivida para o instante, para aproveitar o momento, sem projetos para o futuro. É comparado ao jovem romântico, nas figuras de Don Juan, Fausto e o Judeu errante da parábola de Jesus (Lc 15.11-32). Em seguida, o sujeito evolui para o estágio ético, onde o seu objetivo é buscar o bem e evitar o mal, seguir seus deveres, espelhar-se no caráter familiar além de planejar uma estabilidade e uma continuidade de existência. Essas duas categorias, defende Kierkegaard, ocorrem no plano imanente da vida. O transcendental, todavia, é diferente e só é captado através de um salto, onde a razão e a espiritualidade não podem se relacionar: é o estágio religioso. Kierkegaard usa em sua obra Temor e Tremor, a figura de Abraão, o pai da fé, para simbolizar o arquétipo do homem na fase do salto: “Abraão cala-se... porque não pode falar; nesta impossibilidade residem a tribulação e a angústia. Porque, se não me posso fazer compreender, não falo, mesmo se discurso noite e dia sem interrupção. Tal é o caso de Abraão; pode dizer tudo, exceto uma coisa e quando não pode dizê-la de maneira a fazer-se entender, não fala.”[1] Ou seja, a experiência de Abraão demonstra o fim do processo onde o indivíduo, sem poder encontrar sentido nos prazeres, nem coerência na vida ética, escapa da realidade se refugiando em um local totalmente transcendental, encontrando-se com o absoluto. Esse passo Kierkegaard chama de “fé”, um salto em algo desconhecido. É importante lembrar que esse estágio religioso, para Kierkegaard, não pode ser alcançado por nenhuma justificação racional ou científica, mas é um momento do indivíduo acreditando naquilo, embora aquilo não possa dar a ele certeza sobre coisas concretas.  Norman L. Geisler e Paul D. Feinberg, em Introdução à filosofia: uma perspectiva cristã, escrevem que para o filósofo existencialista “A verdade cristã pode ser conhecida somente por [...] um ‘salto de fé’. Com isso quer dizer um puro ato da vontade contra probabilidades racionais cegantes. Logo, um crente pode ir além da razão para uma entrega pessoal a Deus pela fé somente. A ilustração que Kierkegaard dá desta consideração é a resposta de Abraão ao mandamento de Deus no sentido de sacrificar seu filho amado, Isaque. Pela fé somente, e sem qualquer justificativa ética ou racional, Abraão subiu de boa mente ao monte Moriá para sacrificar seu filho Isaque em obediência a Deus.”[2] Devemos nos perguntar neste momento: qual a consequência dessa visão da fé? O que acontece quando explicamos a fé em termos totalmente transcendentais? Francis Schaeffer (1912-1984) foi um teólogo cristão evangélico americano, além de filósofo e pastor. Ele mapeou essas consequências na sociedade pós-moderna em seu clássico A Morte da Razão: “O que o salto de Kierkegaard fez foi remover a esperança de toda e qualquer unidade. Após Kierkegaard, o que temos é algo assim: o otimismo deve ser não racional/ toda racionalidade = pessimismo. Desapareceu a esperança de um elo entre as duas esferas [imanente e transcendente].”[3] Nossa sociedade tem herdado essa ideia de fé de Kierkegaard de muitas formas. Muitas igrejas, implicitamente, são herdeiras do filósofo quando endossam a fé como um salto cego gerando um conflito entre fé e ciência, dando justificativas para o projeto de secularização dos cientistas céticos. O fato é que, com essa ideia de fé, torna-se totalmente impossível qualquer tentativa de relação de reciprocidade entre o cristão e a ciência. Fé não é um salto do escuro, assim como não é uma ilusão intencional, conceito que exploraremos na coluna da semana que vem, se Deus permitir.



[1]KIERKEGAARD, Soren. Temor e Tremor in coleção Os Pensadores, 1974, p. 321.

[2]GEISLER, Norman L.; FEINBERG, Paul D. Introdução à filosofia: uma perspectiva cristã. São Paulo, SP: Edições Vida Nova, 2009. p. 202.

[3]SCHAEFFER, Francis. A Morte da Razão. São Paulo: ABU Editora; Viçosa, MG: Editora Ultimato, 2014, p. 53.

Fernando Razente

Amante de História, atuante com comunicação e mídia, leitor voraz e escritor de artigos de opinião e matérias jornalísticas.


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