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O que é ciência?


Por: Fernando Razente
Data: 21/09/2021
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"A concepção teórica da realidade, a partir do qual os diferentes ramos da ciência tomam seus pontos de partida, nunca é neutra com relação à religião, sendo intrinsicamente dominada por motivos básicos religiosos por meio dos quais a atividade de pensamento científica adquire sua força motriz principal. Aqui reside o ponto de contato íntimo e necessário entre religião e ciência." — DOOYEWEERD, Herman. Estado e Soberania. São Paulo, SP: Edições Vida Nova, 2014. p. 127.

 Historicamente a noção de “ciência” é muito recente. Apesar de usarmos o termo rotineiramente, suas raízes remontam ao final da História Medieval. De maneira geral, a “ciência moderna” — como é comum chamá-la hoje —  é normalmente definida como um grupo de descobertas no início da Idade Moderna e como uma fase da história que ficou conhecida como a Revolução Científica dos séculos XVI e XVII. Esse período sucedeu o final da Idade Média e englobava a Renascença, uma época marcada pela retomada dos conhecimentos clássicos produzidos pelos filósofos gregos, há cerca de dois milênios atrás. 

As enormes evoluções nas ideias científicas ligadas à física, à astronomia e à biologia, entre outras, também fizeram com que esse período fosse considerado o início da Era Científica em contraponto, muitas vezes, com a Era da Religião. A etimologia da palavra ciência vem do latim scientia e significa meramente "conhecimento"; mas, quando aplicada ao contexto histórico adequado, trata-se de um conhecimento marcado por rigor teórico e metodológico e evidente, fundado quer sobre princípios e demonstrações, quer sobre raciocínios experimentais ou ainda sobre a análise das sociedades e dos fatos humanos. 

Perceba que dessa maneira, a ciência aparece não como um objeto frio e inexpressivo ou um ato neutro e inanimado; antes, a ciência é um contato real e complexo entre mentes humanas e múltiplos aspectos da realidade do universo, uma ação cognitiva de indivíduos com pressupostos, interesses pessoais e compromissos básicos da mente inseridos em uma comunidade de pesquisadores em busca de conhecimento objetivo sobre a realidade do mundo. O que isso nos diz sobre a ciência? 

Em um primeiro momento, nos diz que ela é construída. O grupo de estudos da ABC² de Nova Esperança está promovendo a I Jornada Fé & Ciência, uma série de três palestras sobre as bases para o diálogo entre religião e ciência. No último sábado (18), realizamos a nossa segunda palestra da jornada com o tema “O que é ciência?”, através das excelentes abordagens do professor, engenheiro, biotecnólogo e líder da ABC² de Maringá Paulo Renato Lima. 

O Prof. Paulo, ao expor as noções gerais sobre ciência, nos lembrou de algo pouco reconhecido nesse debate: “A ciência é uma prática social.”, disse o Prof. Paulo. Isso significa que a ciência é radicalmente subjetiva e relativa ao indivíduo ou a algum corpo/objeto natural do universo? Não. Essa é a chamada visão irracionalista do nominalismo. 

D. F. M. Strauss, um filósofo sul-africano e o principal especialista do mundo na teoria dos aspectos modais, uma das principais características do pensamento do filósofo holandês Herman Dooyeweerd, em seu artigo “A Construção (social) do Mundo – no Encontro do Cristianismo com o Humanismo", deixou claro que o irracionalismo nominalista errou ao enfatizar a “[...] singularidade e a individualidade dos eventos – conduzindo, assim, ao historicismo do século 19 e à subsequente virada linguística. Kant influenciou Husserl que, por sua vez, forneceu o ponto de partida para as ideias de Schutz, Berger e  Luckmann – compare a obra conjunta de Berger e Luckmann: A Construção Social da Realidade (1967). A ideia contemporânea “pós-moderna” de que nós criamos o mundo em que  vivemos (seja por meio do pensamento, por meio da linguagem ou por meio de práticas sociais) meramente continua os elementos centrais da filosofia moderna (inicial)."

O que nós conhecemos como pós-modernismo atualmente é em grande parte produto dessa visão de subjetividade radical da ciência, especialmente nos campos da ciência biológica (sexual) e social (identitária). Portanto, ciência como uma prática social não significa ausência de realidades objetivas e normativas. 

Pelo contrário, o conhecimento científico depende sim de realidades regulares e fixas, mas esse conhecimento é desenvolvido através de hipóteses, deduções, empiria, axiomas e crenças básicas, que podem — e vão como nos mostra a história da ciência — se alterar ao longo do tempo.  Algumas teorias ditas científicas em uma época irão até mesmo desaparecer em outras. Essas mudanças no pensamento científico que colocam a ciência como uma prática social são muito bem mapeadas no clássico A Estrutura das Revoluções Científicas, de Thomas Samuel Kuhn (1922-1996) um físico, historiador e filósofo da ciência. 

Na obra, as múltiplas áreas, desde as exatas até as humanas, são analisadas pelo autor que questiona dogmas consagrados da ciência, vendo o progresso do conhecimento científico não tanto como um acúmulo gradativo de novos dados gnosiológicos, e sim como um processo contraditório marcado pelas revoluções do pensamento científico. Tais revoluções são definidas como o momento de desintegração do tradicional numa disciplina, forçando a comunidade de profissionais a ela ligados a reformular o conjunto de compromissos em que se baseia a prática dessa ciência. 

Essas contínuas revoluções no pensamento científico nos mostram que a ciência não é um dado pronto que apenas captamos por osmose em nosso intelecto. Para um conhecimento se tornar científico ou "exato" como alguns gostam de chamar, ele passará por revisões e análises, correções teóricas e mudanças radicais de paradigmas (a história é uma ótima ferramenta para observar isso).

Infelizmente, quando se fala sobre ciência, a maioria das pessoas envolvidas na discussão se esquecem disso e compreendem a ciência como algo auto evidente para todos, mas que somente os cientistas têm aquele acesso especial, um tipo de conhecimento elevado enquanto o resto da sociedade é taxada de inculta, imprecisa e leiga. A noção de “senso comum”, por exemplo, é um desses reflexos de presunção intelectual. 

Esquecemos que a ciência é feita por pessoas, seres humanos que observam o mundo carregados de experiências pessoais, muitas traumáticas e profundamente marcantes, e todas basicamente religiosas, como defende Herman Dooyeweerd (1894-1977). E, ao fazer ciência, não é possível pendurar o seu “eu” e todas essas características fora do laboratório. O caminho, na verdade, é procurar conciliar de forma coerente e razoável as realidades mais básicas e pessoais da natureza humana com as regularidades externas e internas do Universo. 

E isso, não é fácil. Não é rápido. É processual. É construído. Pensar na ciência como um campo de estudos e conhecimentos imutáveis e superiores, marcados sempre por objetividade e neutralidade é ir na contramão do fazer ciência. A verdadeira ciência não ignora a vida cotidiana e as experiências ordinárias.Portanto, responder a pergunta sobre do que se trata a ciência dependerá muito mais da nossa compreensão do que não é ciência. 

Fernando Razente

Amante de História, atuante com comunicação e mídia, leitor voraz e escritor de artigos de opinião e matérias jornalísticas.


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