A generic square placeholder image with rounded corners in a figure.


Como interagir ciência e religião?


Por: Fernando Razente
Data: 14/09/2021
  • Compartilhar:

“Não seriam as várias alegações da religião incompatíveis com a atitude de um cientista, sempre querendo ver os dados, devoto do estudo da Química, da Física, da Biologia e da Medicina? Ao abrir a porta de minha mente a essas possibilidades espirituais, teria eu começado uma guerra de visões de mundo que me destruiria e, por fim, enfrentaria uma vitória com baixas em ambos os lados?” — COLLINS, Francis S. A linguagem de Deus: um cientista apresenta evidências de que Ele existe. São Paulo: Editora Gente, 2007. p. 39.

O livro “A linguagem de Deus” do geneticista Francis S. Collins — cristão e diretor geral do Projeto Genoma Humano — gerou muita polêmica quando foi publicado em 2006. No ano seguinte, foi traduzido para o português, integrando a lista de obras importantes sobre ciência e religião. O objetivo central de Collins na obra é defender a conciliação entre a fé cristã e a ciência, buscando convencer tanto os cientistas quanto os cristãos com quaisquer reservas em relação à ciência. O livro é particularmente interessante, pois Francis Collins não parte de argumentos metódicos (como pode se esperar de um renomado biólogo), mas de uma narrativa envolvente de sua experiência pessoal. Iniciou sua carreira intelectual como agnóstico, depois tornou-se ateu até ser incomodado pela realidade de valores morais em um encontro dramático com uma simples senhora crente que estava hospitalizada, mas que mesmo diante da morte, permanecia em paz. Esse espírito inabalável da senhorinha mexeu com Collins. Depois disso, encontrou-se eventualmente com um pastor metodista que sugeriu a leitura dos argumentos do antigo professor de Oxford e Cambridge, C. S. Lewis (1898-1963) em sua obra Cristianismo Puro e Simples . As ideias ali defendidas por Lewis levaram Collins a entregar-se à fé cristã. É interessante perceber no primeiro capítulo do seu livro, que tem como título “Do ateísmo à crença”, Collins descrevendo seu processo de conversão em um contexto altamente científico em que vivia e, que devido aos seus hábitos de busca rigorosa por compreender todos os aspectos da vida através de métodos científicos, teve uma grande dificuldade em lidar com a ideia de uma possível (e naquele momento obscura) integração entre fé e conhecimento científico; o que permanecia claro era apenas “uma guerra de visões de mundo” que o destruiria. Contudo, no final, o próprio Collins descobriu que estava equivocado e essa guerra, na verdade, era apenas uma invenção desproporcional e aparente. Entre muitas de suas célebres frases, a mais significativa nessa mudança de compreensão é: “Uma das grandes tragédias de nosso tempo é a impressão criada de que ciência e religião precisam estar em guerra.” A visão que busca colocar a religião em guerra com a ciência é muito popular; existem grandes biólogos, físicos e químicos proponentes dessa vertente, alguns dos quais fiz breve menção no artigo da semana passada. No entanto, trata-se apenas de um entre vários modelos de ver a interação entre a fé e a ciência. Além do mais, é o mais deficiente dentre todos os modelos, contribuindo para a divisão, ao invés do diálogo, e para a redução dos diversos aspectos da vida à meras descrições naturais.  O  Dr. Denis Alexander — Diretor do Faraday Institute for Science and Religion e Fellow do St Edmund’s College, em Cambridge  — em artigo publicado no Faraday Papers (publicados pelo Instituto Faraday para Ciência e Religião)  de 2007, propõe pelo menos quatro modelos para relacionar ciência e religião.  O primeiro modelo é exatamente o “Modelo de Conflito”, e a proposta dos defensores é  entender a ciência e a religião existindo em oposição fundamental. A ideia é claramente expressa por John Worrall — professor de filosofia da ciência na London School of Economics e associado ao Centro de Filosofia das Ciências Naturais e Sociais da mesma instituição: “Ciência e religião estão em conflito irreconciliável... Não há modo de manter uma mentalidade apropriadamente científica e ser, ao mesmo tempo, um crente religioso verdadeiro.”  O segundo modelo é conhecido como “Ministérios Não-Interferentes” ou MNI, popularizado pelo paleontólogo e biólogo evolucionista americano Stephen Jay Gould (1941-2002), em sua obra Rocks of Ages  onde defende que ciência e religião operam em compartimentos separados, lidando com questões de tipos muito diferentes. Sendo  assim, por um lado não pode haver conflito entre eles, mas por outro não pode haver diálogo também, visto que cada aspecto está falando de algo distinto. Passamos então para o terceiro modelo, o de “Fusão”, que na verdade são vários modelos e muitas subcategorias dentro dessa perspectiva. Grosso modo, a busca de seus defensores é fundir a ciência com a religião, ou a religião com a ciência. Os modelos de fusão, diz o Dr. Denis “[...] representam o oposto polar do modelo MNI, na sua tendência de apagar completamente a distinção entre os tipos científico e religioso de conhecimento, ou na tentativa de utilizar a ciência para construir sistemas religiosos de pensamento, ou vice-versa.”  Um exemplo prático dessa forma de interação é a tentativa de construir as crenças religiosas a partir da “ciência corrente”. Como a ciência se move muito rápido, as teorias da moda de hoje podem se tornar nos restos de amanhã. Desta forma, “[...] aqueles que fundamentam suas crenças religiosas em teorias científicas talvez se descubram edificando sobre a areia” , conclui Dr. Denis R. Alexander. Por fim, o quarto modo de interação, o “Modelo de Complementaridade”. Sua linguagem foi originalmente introduzida pelo físico dinamarquês Niels Bohr (1885-1962). Ele buscava relacionar as descrições da matéria  como partícula e como onda. Para aqueles que conhecem um pouco da história da física, vão compreender que foi necessário sustentar ambas simultaneamente para fazer justiça aos dados.  Desde o tempo de Bohr, a ideia de complementaridade vem sendo grandemente  ampliada também no interior do diálogo entre religião e ciência, de modo a incluir qualquer entidade (como a própria natureza do ser humano) que requeira múltiplos níveis de explicação para dar conta de sua complexidade. Esse modelo tem como principal proposta reconhecer a diversidade de aspectos existentes na realidade —  biológico, linguístico, musical, jurídico, histórico, físico, matemático, econômico, filosófico, espiritual, etc. — e compreendê-los como complementares; e não reduzi-los a apenas um escopo de análise e abstração.  Deste modo, a ciência e a religião, a fé e a razão, fazem parte da mesma realidade, e podem se comunicar (dentro de diversas metodologias) sem necessariamente estarem em conflito, estritamente distanciadas ou confusamente fundidas. Sobre o complementarismo, o Dr. Denis escreveu: “Falando a linguagem da complementaridade, diríamos que a religião provê um conjunto adicional de explanações, fora dos poderes de avaliação da ciência, ligado a questões factuais sobre o propósito supremo, o valor e o sentido das coisas. Nada, nestes níveis explanatórios da religião, precisa existir em rivalidade com os níveis explanatórios da ciência: as descrições são complementares.”

 

 Collins conta em seu livro que o principal argumento de C. S. Lewis, capaz de gerar um enorme impacto na sua maneira de relacionar fé e ciência, encontra-se no Livro I, “O certo e o errado como chaves para compreensão do sentido do universo.” Veja um trecho: “[...] quando os pensadores do passado chamavam a lei do certo e do errado de ‘Lei Natural’, estava implícito que se tratava da Lei da Natureza Humana. A ideia era a seguinte: assim como os corpos são regidos pela lei da gravitação, e os organismos, pelas leis da biologia, assim também a criatura chamada ‘homem’ possui uma lei própria — com a diferença de que os corpos não são livres para escolher se vão obedecer à lei da gravitação ou não, ao passo que o homem pode escolher entre obedecer ou desobedecer à Lei da Natureza Humana.” (LEWIS, C. S. Cristianismo Puro e Simples, 2017, p. 7.)

 Trata-se do reducionismo. O argumento que tem sido oferecido por essa vertente é o de que a constituição do mundo material pode ser exaustivamente explicada “reduzindo” seus elementos em partes sucessivamente menores até que nada reste para ser explicado. Por exemplo, o reducionismo químico-físico, que entende que as nossas ações e sentimentos como raiva, dor ou medo são estritamente reações de mecanismos químicos altamente complexos com computadores em nossas cabeças. Não existe realidade espiritual e somos apenas átomos e moléculas e os nossos pensamentos, como as crenças, não seriam “nada além de um conjunto de neurônios”. 

 Os Faraday Papers abordam uma ampla gama de tópicos relacionados às interações entre ciência e religião. Uma lista completa dos Faraday Papers disponíveis pode ser vista em www.faraday-institute.org onde cópias gratuitas podem ser baixadas em formato pdf.

 ALEXANDER, Denis R. Modelos para Relacionar Ciência e Religião. Abril de 2007. © The Faraday Institute for Science and Religion. Tradução para o Português: Guilherme V.R. de Carvalho, Setembro de 2007.

 Worral, J. “Science Discredits Religion”, em: Peterson, M. L. & Van Arragon, R. J. (eds.) Contemporary Debates in Philosophy of Religion, Blackwell (2004), p. 60.

 “Non-Overlapping Magisteria – NOMA”. Gould, S.J., Os Pilares do Tempo, Rocco (2002).

 ALEXANDER, Denis R. Modelos para Relacionar Ciência e Religião. Abril de 2007. © The Faraday Institute for Science and Religion. Tradução para o Português: Guilherme V.R. de Carvalho, Setembro de 2007.

 Ibidem.

 “Bohr elaborou sua posição no princípio de complementaridade, que afirma que onda e partícula são duas versões igualmente possíveis e complementares, embora mutuamente incompatíveis, de como objetos quânticos (como elétrons ou átomos) irão se revelar a um observador. Onda e partícula são duas formas complementares de existência, que se manifestam apenas após o objeto quântico ter entrado em contato com o observador. Antes desse contato, o objeto quântico não é nem partícula nem onda. De fato, antes do contato, não podemos nem mesmo dizer se o objeto existe ou não. Esses dois princípios, de incerteza e de complementaridade, forma a chamada ‘Interpretação de Copenhague da mecânica quântica’, desenvolvida principalmente por Bohr [...]” (GLEISER, Marcelo. A dança do universo, p. 295)

 É importante lembrar da contribuição de Herman Dooyeweerd (1894-1977), um filósofo cristão holandês que produziu um sistema filosófico a partir de uma visão bíblica denominado de “filosofia reformacional” ou “filosofia da ideia cosmonômica” cujo núcleo do pensamento está na rejeição do absolutismo da razão, isto é, de que a razão seja a fonte última da verdade, abrindo caminho para diversos modos de explicação coerente de uma mesma realidade, oferecendo uma antítese aos tipos de reducionismos que o racionalismo gera.

 ALEXANDER, Denis R. Modelos para Relacionar Ciência e Religião. Abril de 2007. © The Faraday Institute for Science and Religion. Tradução para o Português: Guilherme V.R. de Carvalho, Setembro de 2007.

Fernando Razente

Amante de História, atuante com comunicação e mídia, leitor voraz e escritor de artigos de opinião e matérias jornalísticas.


Anuncie com Jornal Noroeste
A caption for the above image.


Veja Também


smartphone

Acesse o melhor conteúdo jornalístico da região através do seu dispositivos, tablets, celulares e televisores.