O estudo histórico dos domínios teóricos da ciência e da religião
Por Prof. Fernando Razente[1]
“Quando observamos o passado (...) vemos que os limites desses dois domínios (ciência e religião) eram entendidos de modo muito diferente e que as questões que dizem respeito ao sentido e ao valor humanos últimos eram raramente dissociadas do entendimento da natureza do universo.”
– HARRISON, Peter. Os territórios da ciência e da religião.Viçosa, MG: Ultimato, 2017. p. 11.
Um ponto frequentemente negligenciado nos debates acadêmicos contemporâneos sobre a relação entre ciência e religião é o fato de que a conhecida separação rígida entre esses dois domínios de conhecimento e experiência é uma construção histórica relativamente recente. Parece-nos, com base nas publicações sobre o tema de inspiração iluminista, que esses dois campos de poder na cultura estão em um conflito irreconciliável, e que este conflito – tal como uma lei científica – sempre existiu na história.
Porém, por trás da narrativa moderna do eterno e inexorável “conflito entre ciência e fé”, há uma longa história, marcada por diálogo, interdependência e mútua inspiração, não deixando de ter sido em alguns momentos também caracterizada por hostilidade, fideísmo ou empirismo radical. O fato é que, a partir de um estudo histórico, uma observação atenta das evidências do passado, como sugere Harrison, é possível superar o chamado mito do conflito e compreender que, por muitos séculos, investigar a natureza e buscar o sentido da existência eram partes de um mesmo empreendimento intelectual.
Na Antiguidade, a busca pelo entendimento do cosmos era, ao mesmo tempo, uma busca por sabedoria espiritual. Filósofos como Platão e Aristóteles não viam oposição entre razão e transcendência, mas sim uma integração. A filosofia primeira aristotélica, por exemplo, era uma investigação sobre as causas últimas do ser.
Durante a Idade Média, ciência (entendida então como philosophia naturalis) e teologia coexistiam como partes integrantes do conhecimento. Grandes nomes como Santo Agostinho, Boécio, e especialmente São Tomás de Aquino, trabalharam para integrar a fé cristã ao pensamento racional herdado dos gregos. Aquino, em particular, propôs que a razão e a revelação eram dois caminhos para a mesma verdade, e sua Suma Teológica aborda temas metafísicos, morais e naturais sob a ótica da fé e da razão. Ou seja, a natureza era compreendida como criação de Deus, e estudá-la era, em certo sentido, um ato de piedade.
Com o advento da ciência moderna, muitas vezes se pressupõe uma ruptura com o pensamento religioso. No entanto, estudiosos como o historiador da ciência e antigo professor de História da Ciência na Universidade de Utrecht, Países Baixos, Reijer Hooykaas (1906-1994) em “A Religião e o Desenvolvimento da Ciência Moderna” (1972), argumenta que “(...) à época em que surgiu a ciência moderna, a religião constituía um dos fatores mais poderosos da vida cultural. O que as pessoas pensavam de Deus (ou deuses) influenciava sua concepção da natureza, o que, por sua vez, influenciava os seus processos de investigação da natureza, ou seja, a sua ciência.”
Em outras palavras, o desenvolvimento da ciência nos séculos XVI e XVII ocorreu em grande parte em ambientes profundamente religiosos. Copérnico era cônego da Igreja; Kepler via sua astronomia como leitura das leis divinas; Newton escreveu mais sobre teologia do que sobre física. Em suma, para esses pensadores, o universo era um livro escrito por Deus em linguagem matemática.
A chamada Revolução Científica não significou, portanto, um abandono da fé, mas uma reconfiguração dos modos como a natureza era compreendida. As questões do sentido e do valor último ainda estavam intimamente ligadas ao estudo do universo. A ciência moderna nasceu com raízes religiosas, e seus fundadores não viam antagonismo entre investigar a ordem natural e adorar o Criador dessa ordem.
Porém, é na contemporaneidade histórica que a ideia de que ciência e religião estão em permanente guerra foi consolidada, especificamente no século XIX, a partir da publicação e influência de obras “A história do conflito entre ciência e teologia na cristandade” (1896) de Andrew Dickson White (1832-1918), e “A história do conflito entre religião e ciência” (1874), de John William Draper (1811-1882). Ambos influenciaram profundamente o debate acadêmico sobre a relação entre religião e ciência, de modo que suas teses se tornaram em paradigmas analíticos da relação entre esses dois domínios.
Essas teses, embora influentes, são hoje amplamente criticadas por historiadores da ciência e da religião, incluindo Harrison e Ronald Numbers. Eles demonstram que os supostos casos de conflito — como o julgamento de Galileu — são mais complexos e envolvem fatores políticos, pessoais e institucionais, e não apenas uma disputa entre fé e razão.
Em suma, quando analisamos a história com rigor, percebemos que as fronteiras entre ciência, religião e filosofia sempre foram móveis, permeáveis e culturalmente moldadas e que, durante séculos, a busca pelo conhecimento sobre o sentido do mundo e sobre o lugar do ser humano nele foi uma tarefa comum a religiosos, filósofos e cientistas, ou de religiosos que eram filósofos da ciência!
O curso de Filosofia & Ciência da Religião do Centro Universitário São Camilo, sobretudo nas disciplinas de História das Religiões no Ocidente e História das Interações entre Fé e Ciência – da qual tenho a honra de ministrar – é uma preciosa oportunidade para que, como acadêmicos, possamos rever nossos pressupostos modernos sobre a relação entre ciência e religião. Longe de serem campos inimigos, iremos aprender que esses domínios já estiveram – e ainda estão em muitas instituições e em iniciativas intelectuais – unidos na tentativa de compreender o sentido último da existência humana e a ordem do universo.
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[1]Professor de História das Religiões no Ocidente e História das Interações entre Fé e Ciência no Centro Universitário São Camilo (SP).