Dia do Índio ou dia Internacional dos Povos Indígenas?
Por Helena Azevedo Paulo de Almeida*
Sabemos que o “Dia do Índio” é comemorado todos os anos, no 19 de abril. Talvez “comemorado”, não seja o termo mais adequado, nem mesmo “celebrado”. Acredito que o termo apropriado seria “lembrado”, ou mesmo “mencionado”. Sim, afinal, não temos no Brasil uma estrutura que realmente exalte ser indígena. De acordo com o Observatório da violência Indígena, criado pelo Conselho Indigenista Missionário (CIMI), somos o país com mais registros de violências contra os povos originários e, mesmo assim, há também uma realidade de subnotificações desses ataques, que podem ser contra a Pessoa, contra o Patrimônio e, principalmente, violência por Omissão do Poder Público. Essas são categorias que o CIME se baseia para classificar os crimes contra os povos indígenas.
O próprio “Dia do Índio”, criado no governo Vargas, em 1943, deve ser encarado como uma quarta forma de violência, que é a simbólica. Este dia foi apenas incorporado no calendário brasileiro, após anos de pressão por parte de indigenistas da época e, também, através do Serviço de Proteção ao Índio (SPI), órgão predecessor da FUNAI. Há quem defenda que o dia 19 de abril teria sido escolhido por lideranças indígenas no Congresso Indigenista Intramericano, realizado no México em 1940. Mas essas mesmas lideranças boicotaram os primeiros dias do evento, pois não acreditavam que suas demandas seriam ouvidas (e de certa forma, estavam certos). Por isso, paira a dúvida se teriam sido eles mesmos os responsáveis pela escolha, ou se esta já teria sido feita pelos não-indígenas, participantes do evento.
Outro ponto importante também é que nesse mesmo Congresso foi criado o Instituto Indigenista Intramericano. Sem nenhum assombro, o Brasil não aderiu imediatamente ao Instituto. Uma resposta muito clara da posição governamental, frente às demandas dos inúmeros povos originários do período. Infelizmente, se formos parar para refletir sobre isso, a situação não se modificou tão drasticamente desde os anos 1940 até nossa atualidade. Claro, tampouco é a mesma coisa, já que hoje temos acesso direto às demandas indígenas, justamente porque podemos ouvi-los em suas próprias vozes, que antes eram intensamente tuteladas.
E é por isso que o Dia Internacional dos Povos Indígenas é tão importante. O dia 9 de agosto, para celebrar a força dos povos originários, foi DE FATO escolhido por lideranças indígenas em Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas, em 1995. Um dos diferenciais desta data recai sobre a diversidade que o debate desencadeado englobou, afinal, não se trata exclusivamente dos povos indígenas nas Américas, mas no mundo. Sim, porque é necessário ressaltar que os povos originários resistem, de maneira resiliente, ao redor do planeta.
A data traz à tona para nós, não-indígenas, que os povos originários estão presentes, em nosso tempo contemporâneo, em todas as partes. Apenas é preciso reconhecê-los em suas próprias características, hábitos e tradições. Algo que lhes é negado VIOLENTAMENTE pelas sociedades não-indígenas. E uma das inúmeras justificativas para isto é, precisamente, a idealização que não-indígenas constroem sobre os grupos étnicos. As características que são ressaltadas no 9 de abril, ao menos em território nacional, são as mesmas de sempre: cocar de papel crepom, rosto pintado e ao fundo a música recorrente de determinada antiga apresentadora de programas infantis. Um aglomerado de estereótipos redutores e que não destacam em absolutamente nada a pluralidade presente nos mais de 300 povos originários, apenas em território brasileiro.
Estes estereótipos, infelizmente, também fazem parte da idealização sobre os povos indígenas, que mencionei logo acima, que por sua vez é perpetuada por várias produções culturais ao longo do tempo. Principalmente desde José de Alencar, com títulos como “Iracema” ou “O Guarani”, o ideal de indígena é aquele que serve ao branco, ora como mão de obra (como vai ser perpetuado ao longo do século XX, até pelos órgãos governamentais), ora como a própria representação do cavalariço medieval, como é o caso de “O Guarani”. Em ambas as obras (me desculpem o spoiler), o “índio” morre. Porque é isso, não é mesmo? A mensagem que permanece é a do indígena morto, no passado.
A representação dos povos originários no presente, atuantes nas mais diversas profissões, não são mera representação. São suas vozes sendo faladas por si mesmo e, importantíssimo, sendo ESCUTADAS por não-indígenas. É assim que podemos, e devemos, ter acesso aos trabalhos de Aline rochedo Pachamama, escritora do povo Puri e doutora em História pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Ou ter acesso ao rap de Werá Jeguaka Mirim, conhecido Kunumi MC, da aldeia Krukutu, ou do grupo Brô´s MC, do povo Guarani Kaiowá. E representando as mulheres no rap, o exemplo de Katumirim, do povo Boe-Bororo. Ou ainda, o caso do grupo de rock-metal com letras escritas em Tupi-Guarani, a banda Arandu Arakuaa. Mas a realidade é maior, mais ampla e plural, felizmente! Um texto nunca será suficiente para trazer à tona tantos exemplos necessários condizentes com esta diversidade.
Acho que essa é uma das características mais fundamentais do Dia Internacional dos Povos Indígenas: ele fala sobre a pluralidade. Para usar um termo que tem sido muito usado (e, muitas vezes, mal usado), o 9 de agosto retoma o lugar de fala dos povos originários para eles mesmos. É importante ressaltar, o conceito de “lugar de fala” não impede uma pessoa não indígena de falar sobre o tema, como é o meu caso aqui. O conceito ressalta os limites que isso traz, pois para muito além de um argumento identitário (como muitos sugerem para desqualificá-lo), este é um conceito que ressalta o etnocídio e o epistemicídio que os povos originários e o conhecimento que eles produzem sofrem. Assim, ressaltar o lugar de fala de cada interlocutor ou, como aqui, escritora, é importante para delimitar as estruturas sociais que cada produção de conteúdo estabelece, salientando assim seus próprios limites de abordagem.
Nenhum texto, justamente por isso, é capaz de esgotar um tema. Peço ao leitor que desconfie duramente de um texto que se proponha isto. E especialmente no que tange as temáticas indígenas! Uma vida é incapaz de entender a complexidade dos povos originários, que vão desde os Kaingang no sul do país, aos Ainus, no Japão, ou aos Inuítes, conhecidos genericamente por esquimós (que é, importante ressaltar, um termo depreciativo). Esses são apenas pouquíssimos exemplos da multi-etnicidade presente no mundo, mas que teimamos em vê-los como um bloco homogêneo, o “índio”.
O Dia Internacional dos Povos Indígenas é, dentre tanto mais, um dia de celebração da diversidade. E também da pluralidade de lutas, afinal, já ficou bem claro, que são povos diversos com demandas que podem comungar de necessidades semelhantes, mas que, ao mesmo tempo, são diferentes entre si. E isso porque é necessário também trazer a tona as especificidades de cada povo, mas também de suas variedades. Assim, é o momento de ressaltar os movimentos de mulheres indígenas, como a Marcha das Mulheres Indígenas e o Voz das Mulheres Indígenas, ao mesmo tempo que se ressalta as pautas das comunidades LGBT indígenas. Os feminismos indígenas conquistaram a duras lutas o dia 5 de setembro, como Dia Internacional da Mulher Indígena.
Mas se fosse para escolher apenas uma coisa (o que é um tanto contraditório) que gostaria de ressaltar sobre o Dia Internacional dos Povos Indígenas, seria sua pluralidade. Se o leitor retornar ao início do texto e relê-lo, perceberá que tentei destacar os aspectos plurais de todos os itens que elenquei, em contraposição ao “Dia do Índio”, em seu aspecto singular e unitário. Se os contos de fábulas terminam com a “moral da história”, gostaria que o final deste texto fosse: o plural da história indígena.