Experiências em minas gerais (parte 2). O que é a arte?
Quando eu era criança, eu pensava que a capacidade criativa dos escritores e dos diretores de cinema era infinita. Depois que comecei a escrever, aos doze anos, tomei conhecimento de que a mente humana é poderosa, mas não infinita, de modo que a arte imita a vida. De um simples acontecimento do dia a dia, palavras são ordenadas.
Um dos maiores temores de todo artista, seja ele escritor ou ator, é de estar sendo repetitivo. Na verdade, se a arte se tornar reprodução, deixa de ser arte, o que é completamente diferente de querer criar o que nunca, nem em partes, foi feito. Quantas imagens religiosas de Jesus e de santos católicos foram feitas? Impossível contar. Porém, mesmo assim, o italiano Michelangelo Buonarroti e o Mestre Manuel da Costa Ataíde fizeram suas representações de Jesus e dos santos. A Capela Cistina é um exemplo da arte do primeiro, e o teto da Igreja São Francisco de Assis, de Ouro Preto, é uma obra-prima do segundo.
Para quem é historiador, ou para quem gosta de cultura, andar pelas cidades históricas mineiras é um museu a céu aberto. Ouro Preto, Mariana, Congonhas, Tiradentes e São João del Rei são obras de arte disponíveis a todos que as visitam. Em especial nas três primeiras, abundam obras dos mestres do Barroco Mineiro, Aleijadinho e Ataíde. Ouro Preto, por exemplo, tem vários quilômetros tombados em seu centro histórico, um feito extraordinário. E o que é um tombamento? Algo reconhecido por alguma entidade, no caso de Ouro Preto, a UNESCO e o IPHAN, como de alto valor histórico e que merece ser preservado.
Mestre Ataíde foi, sobretudo, professor e pintor, deixando para a posteridade obras em quadros, em paredes (em formato de azulejo, na Igreja São Francisco de Assis) e em tetos de igrejas. É difícil, senão impossível, enumerar tudo o que o artista fez, de modo que é possível afirmar que todo criador é um grande dispensador de energia.
É de Ataíde, conforme dito, o teto da Igreja São Francisco de Assis, uma igreja que é considerada uma das “Sete maravilhas de origem portuguesa no mundo”. Essa igreja foi projetada por Antônio Francisco Lisboa (Aleijadinho), bem como a sua fachada (cheia de ícones de alto valor simbólico), mas o seu interior, em especial as pinturas, receberam o toque genial e peculiar de Ataíde, que era natural de Mariana, cidade vizinha a Ouro Preto e que foi a primeira capital mineira.
Como já fui duas vezes ao Vaticano e pude observar a Capela Cistina, posso afirmar que o trabalho de Ataíde é tão primoroso quanto o de Michelangelo. Ambos representaram Deus, Jesus, os anjos, mas de formas peculiares. Quanto a Ataíde, sobejam elementos brasileiros, como a influência africana, dando à imagem da Virgem feições negras. O mesmo se percebe nos anjos.
Ainda sobre as pinturas feitas por Mestre Ataíde na Igreja São Francisco de Assis, há três que podem ser consideradas polêmicas em alto grau: 1ª Jesus com uma representação feminina; 2ª um anjo com os seios de fora; e 3ª dois anjos se acariciando. Não é preciso detalhes para concluir que essas representações fogem ao ortodoxo, de modo que é possível cogitar que há muito do artista nas pinturas, seja uma mente além do tempo, seja uma mente extravagante. De todo modo, seria um perigo julgar a mente de Mestre Ataíde, mas, isto sim é possível e é preciso dizer, que o artista, mesmo retratando cenas consagradas, deu a sua criatividade.
O perigo do artista não é falar muito de si, até porque isso pode ser feito de inúmeras formas, mas o de se tornar superficial, artificial e um reprodutor. Superficial: não aprofunda temas e problemas; artificial: fala o que não lhe pertence; reprodutor: não traz nada novo.
Quanto a Aleijadinho, ele vem de uma forte tradição familiar artística, sendo que seu pai, um artista português, Manuel Francisco Lisboa, deixou diversos trabalhos em Ouro Preto, como a Matriz de Nossa Senhora da Conceição de Antônio Dias e a Igreja de Nossa Senhora do Carmo. Aleijadinho segue essa tradição, elevando-a ao extremo.
Tanto Aleijadinho quanto Ataíde compõem o chamado Barroco Mineiro. E o que seria o “Barroco”? Em linhas gerais: o horror ao vazio, uma arte que surge a partir da Contrarreforma e que trabalha intensamente com os sentidos (sinestesia). A Igreja Nossa Senhora do Pilar, em Ouro Preto, no quesito Barroco, é considerada uma das maiores expressões artísticas brasileiras e mundiais. E por que do termo “mineiro” no Barroco? Porque esse foi um estilo com peculiaridades, se comparado com o Barroco Espanhol. A brasilidade não foi desprezada por parte de Ataíde e Aleijadinho. Mas, esses mesmos mestres também trabalharam no estilo Rococó, que tem por características: mais leveza se comparado ao Barroco em sua primeira fase, menos decorado, influência iluminista.
Já no que diz respeito a Aleijadinho, ele também deixou sua marca em tudo o que fez, mesmo quando lhe era encomendado algo tradicional. É o caso dos profetas de Congonhas, obra-prima de escultura, feita em padra sabão, das fachadas das igrejas e dos projetos arquitetônicos. A visão de fora da Igreja São Francisco de Assis é repleta de simbolismo, em que se contempla, a um só tempo, uma igreja preparada para a guerra, com a vista dos canhões, mas também preparada para a arte, com a vista de livros se abrindo. Porém, na medida em que o fiel se aproxima da igreja, o lado bélico desaparece e só fica o celestial.
Quanto mais se estuda as obras dos mestres, sejam eles de quais áreas forem, mais se descobre o poder criativo que eles manifestaram. Não custa dizer que Ataíde e Aleijadinho são artistas dos séculos XVIII e XIX, que receberam larga influência dos iluministas e dos inconfidentes mineiros. Aleijadinho, por exemplo, ia à biblioteca de Cláudio Manuel da Costa. Quem quer alimentar a vida intelectual deve tratá-la enquanto um rigoroso trabalho. Não há criação sem um profundo esforço. Isso é fácil de ver ao andar pelas ladeiras de Ouro Preto, que antes se chamava Vila Rica.
Andar pelas ruas íngremes de Ouro Preto é voltar ao passado, e também perceber que o presente não é tão distante assim em valores do passado. Se Ouro Preto chegou a ter uma população maior do que a de São Paulo e Nova York quando do auge da extração aurífera, também hoje, quando se descobre um lugar com esse minério, muitos para lá se deslocam. Vide o caso de Serra Pelada, no Pará, e vide tantos garimpos ilegais em Roraima, em Rondônia e mesmo em países vizinhos, como na Guiana Francesa.
É impossível em um único texto passar a limpo a história de um lugar tão rico quanto a de Vila Rica, que se tornou a segunda capital mineira, até o ano de 1890, quando passou a ser Belo Horizonte. Porém, esse texto é um convite para que museus sejam visitados, pois eles dizem muito sobre o passado, o presente e o futuro. Uma simples prova é que expressões como “olha o passarinho”, “vigarista”, “pé rapado”, “meia tigela”, “bucho cheio” e “santinho do pau oco”, que têm referências em Minas Gerais, considerada terra dos ditados populares, até hoje são comumente ditas.
Otto Maria Carpeaux. O Barroco e o Classicismo por Carpeaux. Rio de Janeiro: Leya, 2012.
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Dr. Felipe Figueira
Felipe Figueira é doutor em Educação e pós-doutor em História. Professor de História e Pedagogia no Instituto Federal do Paraná (IFPR) Campus Paranavaí.