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“Eu sei que a gente se acostuma, mas não devia”


Por: Simony Ornellas Thomazini
Data: 06/03/2020
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O título do texto de hoje faz parte da primeira linha do poema de Marina Colasanti, escritora brasileira.

A gente se acostuma, e se acomoda com empregos estáveis. Aqueles que nos dão alguma garantia, já que a vida não nos dá nenhuma. A gente se acomoda a ganhar o mesmo salário, a lidar com os mesmo problemas, a ouvir as mesmas reclamações (nossas e dos outros). A gente se acomoda e por lá fica enquanto os anos passam, e o tempo escorre diante de nossos olhos.

Nos acomodamos com uma vida mais ou menos. Um emprego mais ou menos. Uma casa mais ou menos. E tudo o que nos rodeia segue o mesmo ritmo. E numa vida mais ou menos fica muito mais difícil de reconhecer quando é preciso mudar, inovar. A gente se acostuma com aquilo, e por lá fica porque é mais seguro.

E embora uma vida mais ou menos dê sinais de que algo não vai bem, de que alguma coisa está capengando, a gente finge não ver porque não queremos correr o risco de saber como seria uma vida diferente. E então a gente diz que é melhor assim, que a estabilidade nos traz segurança, que é mais seguro ter a certeza do mundo que conhecemos, do que a incerteza de mudar, e, vai saber o que podemos encontrar, não é? 

A gente se acomoda, mas não devia. Quando algo não vai bem e estamos infelizes numa determinada situação, aí talvez, algumas pessoas, possam desejar mudanças, mas, infelizmente, a maioria das pessoas também se acostuma com aquilo que faz mal. E quando chega a esse ponto, é o corpo que começa adoecer.  Sobre isso, Friedrich Nietzsche, filósofo alemão, em “Assim falou Zaratustra”, diz: “Há mais razão em teu corpo do que em tua melhor sabedoria.”

O corpo produz efeitos do que calamos. A angústia também comparece nos alertando que é preciso voltar-se pra dentro e sondarmos o que habita em nosso íntimo. Se não investigarmos de vez em quando a vida que levamos, é muito provável que ela acabe nos levando. E se eu não sei para onde quero ir, qualquer lugar serve e preciso estar contente com o resultado, afinal, foi eu que escolhi isso. Não posso culpar ninguém pelo destino que eu mesmo me dei. 

Deixo aqui o poema da Marina Colasanti que eu sempre releio de tempos em tempos: 

 

EU SEI, MAS NÃO DEVIA

Eu sei que a gente se  acostuma. Mas não devia...

A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e não ter outra vista que não as janelas ao redor. E porque não tem outra vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E porque não olha pra fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.

A gente se acostuma a acordar de manhã, sobressaltado porque está na hora. A tomar café correndo porque está atrasado. A ler o Jornal no ônibus porque não pode perder o tempo de viagem. A comer sanduíches porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.

A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E aceitando a guerra aceita os mortos e que haja números para os mortos. E aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E não aceitando as negociações de paz aceita ler todo dia, de guerra, dos números, da longa duração.

A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.

A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes. A abrir as revistas e ver anúncios, a ligar a televisão e assistir comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.

A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o que necessita. E a lutar por ganhar o dinheiro com que paga. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagará mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.

A gente se acostuma à poluição. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias da água potável, à contaminação da água do mar, à lenta morte dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinhos, a não ter galos na madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta do pé, a não ter sequer uma planta.

A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente molha só o pé e sua o resto do corpo.. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer, a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.

A gente se acostuma para não ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se da faca e da baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que de tanto acostumar, se perde de si mesma.

Simony Ornellas Thomazini


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