Hannah Arendt, a escola e os diários da minha mãe
Um dos textos que mais gosto em matéria de educação é “A crise na educação”, de Hannah Arendt. Em poucas páginas a pensadora consegue explorar vários aspectos fundamentais ao tema: currículo, autoridade na educação, aspectos público e privado, dentre outros.
Tendo em vista que há anos exploro as ideias de Arendt sobre educação, consegui passar por vários caminhos, que nunca se fecham. As ideias da filósofa sempre se renovam.
Em 16 de dezembro de 2019, sob sugestão da minha esposa, comecei a escrever um diário sobre a docência. Ironicamente, veio 2020 e, por causa do covid-19, eu me tornei um professor sem alunos, ou, melhor dizendo, com alunos a distância. Foi durante a escrita desse diário que a minha mãe me disse que também tinha uma série de anotações pessoais, que iam de 1988 a 2004. Achei incrível, pois eu não sabia da existência de tais registros.
O diário da minha mãe se divide em três grandes partes. Primeira: vai de 1988 a 1996; detalhes da minha vida são explorados, desde as primeiras palavras até os primeiros dias na escola. Segunda: 1996, meses antes da minha irmã nascer; minha mãe descreve a gravidez nos mínimos detalhes. Terceira: 2002 a 2004, de quando o meu avô materno, Waldemar, é diagnosticado com câncer, até os vários sonhos que a minha mãe teve com o vô. E, apenas para constar, todos esses anos são narrados em apenas vinte e seis páginas.
Para retornar ao texto de Arendt, a pensadora diz que há dois grandes aspectos que precisam ser entendidos e preservados: o público e o privado. É no privado que se inserem nossas casas, e é nesse espaço que nós, enquanto pessoas, crescemos e amadurecemos. Tanto a criança quanto o adulto, mas ainda mais a criança, precisam da proteção por parte do âmbito privado, representado pela casa e pela família, sendo que a ausência desses muros protetores pode acarretar em danos ao amadurecimento do indivíduo. Segundo Arendt (2009, p. 235-236):
Por precisar ser protegida do mundo, o lugar tradicional da criança é a família, cujos membros adultos diariamente retornam do mundo exterior e se recolhem à segurança da vida privada entre quatro paredes. Essas quatro paredes, entre as quais a vida familiar privada das pessoas é vivida, constitui um escudo contra o mundo e, sobretudo, contra o aspecto público do mundo. Elas encerram um lugar seguro, sem o que nenhuma coisa viva pode medrar. Isso é verdade não somente para a vida da infância, mas para a vida humana em geral. Toda vez que esta é permanentemente exposta ao mundo sem a proteção da intimidade e da segurança, sua qualidade vital é destruída. No mundo público, comum a todos, as pessoas são levadas em conta, e assim também o trabalho, isto é, o trabalho de nossas mãos com que cada pessoa contribui para com o mundo comum; porém a vida qua vida não interessa aí. O mundo não pode lhe dar atenção, e ela deve ser oculta e protegida do mundo.
Quando olho para o diário da minha mãe vejo a grande educadora que ela foi e o quão protegido eu fui do aspecto público, que é o próprio mundo. Há registros no diário que hoje me enchem de vergonha, mas que foram fundamentais para o meu desenvolvimento. Há coisas que eu fiz ou falei em oculto, mas que a minha mãe viu.
Agora, por meio de um simples exercício de imaginação, é preciso pensar: e se a minha mãe tivesse exposto meu aprendizado ao mundo? E se a cada tombo minha genitora viesse com deboches? A vida, que não é das tarefas mais fáceis e é cheia de faltas, tanto mais complexa se torna se no próprio ambiente familiar a criança for desprotegida. A semente pode murchar, pode morrer. Para complementar essas ideias, Arendt (2009, p. 236) diz:
Tudo que vive, e não apenas a vida vegetativa, emerge das trevas, e, por mais forte que seja sua tendência natural a orientar-se para a luz, mesmo assim precisa da segurança da escuridão para poder crescer. Esse, com efeito, pode ser o motivo por que com tanta frequência crianças de pais famosos não dão em boa coisa. A fama penetra as quatro paredes e invade seu espaço privado, trazendo consigo, sobretudo nas condições de hoje, o clarão implacável do mundo público, inundando tudo nas vidas privadas dos implicados, de tal maneira que as crianças não têm mais um lugar seguro onde possam crescer.
Diante dessas considerações imagino que não seja de todo errado dizer que a escola é um misto do aspecto público e do aspecto privado, o que a própria pensadora alemã nos permite dizer. A escola não é o mundo, mas preparação para o mundo; a escola não é a família, mas também possui uma dinâmica de acolhimento e proteção. Por causa dessas ideias que é possível dizer que a escola deve ser fechada por um lado e aberta por outro.
A escola é fechada pois as pessoas ali presentes – crianças e adolescentes – são seres em desenvolvimento. Seria abominável um professor expor os erros e vexames dos alunos a todos. Trata-se de uma questão de proteção. Outro fator pelo qual a escola é fechada é porque não é tudo que pode entrar de qualquer jeito em seus muros. A notícia jornalística do dia anterior não pode ser despejada em uma aula, pois isso pode minar a lógica, a mente dos alunos. Há um currículo e ele não existe para mero enfeite.
Por outro lado, a escola é aberta porque é uma preparação para o mundo. Crianças e adolescentes serão adultos e precisam conhecer o mundo. Um ótimo meio de transição é a escola, logo, ela deve ser aberta e seus muros devem ter entradas. Não se trata de deixar a escola desprotegida fisicamente, pois nela se encontram seres em formação e todo cuidado é pouco – e mesmo com cuidado o perigo ronda. O que é preciso é abrir a escola para o mundo no sentido de que a escola não é uma ilha. O que se passa no universo da política pode ser trazido para a aula, mas não de qualquer modo, para não se perder de vista o currículo. É preciso organizar o caos, o que não se confunde com tirania, mas com responsabilidade pelo mundo.
Através de poucas palavras, e inspirado pela grande pensadora judia, foi possível passear pelo texto “A crise na educação”, pelos diários da minha mãe e pelo universo escolar. Quando alguém se coloca a escrever, a pensar, não é apenas um exercício de contar algo, mas de transformar, ressignificar, experimentar.
Felipe Figueira. Diário de um Docente: 2019-2021. São Paulo: Editora Patuá, 2023.
Hannah Arendt. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2009.
Dr. Felipe Figueira
Felipe Figueira é doutor em Educação e pós-doutor em História. Professor de História e Pedagogia no Instituto Federal do Paraná (IFPR) Campus Paranavaí.